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Criei este blogue com a ideia de o rechear com estórias rutilantes, ainda que às vezes embaciadas. Penso que são escritas sagazes e transparentes, embora com reservas e alguma indecência à mistura. No entanto, honestas.
Cansado de ver passar os comboios, e na incerteza quanto ao que o futuro me reservava, resolvi abalar até à capital. Fartei-me daquela cidadezinha de interior, de patrõezinhos preconceituosos que me negavam um posto de trabalho, temendo que o meu apelido lhes pudesse causar engulhos.
Perante tanta má vontade, desisti de andar a "esmolar" de porta em porta. Era tempo de refazer a minha vida noutro lugar, algures onde pudesse passar despercebido e decidisse, de motu proprio, sem grilhetas nem estigmas.
Desta feita, em vez de continuar a vê-los passar, decidi apanhar o último, levando comigo apenas a roupa que trazia no corpo, algum dinheiro que minha mãe tinha providenciado, e a vontade indelével de esquecer tudo o que ficara para trás. Não guardei tristezas nem rancores, nem deitei culpas a meu pai pelos meus insucessos, nem à mulher que me pariu, pela bonomia excessiva, em face dos destemperos do marido com relação à nossa educação; muito particularmente à minha, pois um infeliz acaso quis que saísse primogénito...
Lembro-me ainda que, por essa infeliz razão e outras, fomos educados por forma a sermos comedidos, de acordo com regras de contenção e sobriedade impostas por meu pai, não obstante pertencermos a uma família pequeno-burguesa. Por exemplo, um dos meus irmãos, em pleno pino do Verão, pediu-lhe que mandasse fazer um fato mais leve para suportar melhor a canícula. Resposta imediata e sem apelo: a escolha dos tecidos, dos cortes e a altura apropriada para encomendar fatos, ou lá o que fosse necessário, era da sua exclusiva competência e não de um "imberbe" qualquer, enfatizando, bem, a palavra "imberbe". Meu irmão, que também não era bom de assoar, escolheu andar todo o santo Verão com uma batina de Inverno, de fazenda grossa, usada no colégio e a suar as estopinhas. Não se tivesse armado em cuco, pois então!
Recordo, como se fosse hoje: acabara de sair da adolescência, com as necessidades inerentes a essa mudança em todos os sentidos. É claro que dependia muito dos tostões que minha mãe sorrateiramente me metia no bolso, presumo que com algum receio de ser descoberta e também - garanto - com muito sacrifício. Isto porque meu pai nunca teve o costume de dar-nos dinheiro ou agraciar-nos com mimos. Pelo contrário, geria a economia do lar, destinando dinheiro para isto ou para aquilo, com metódica parcimónia; hábito que lhe ficou, em face dos maus exemplos de esbanjamento de bens de família por parte de meu avô paterno, nomeadamente dádivas "generosas" à Igreja e outros gastos desregrados com o jogo e sabe-se lá que mais. O seu filho herdara a gestão de uma casa quase arruinada e, associado a essa triste herança, o corte de relações com a família paterna por ter cometido o "sacrilégio" de se perder de amores por uma campesina analfabeta - a senhora, minha mãe...
Outro paradigma da personalidade agreste do meu progenitor, este de carácter anti-religioso, foi o facto de um dia eu ter aparecido em casa com uma gravura de "Nossa Senhora" que uma professora bem intencionada, mas desconhecedora do seu azedume contra a Igreja, tinha guardado dentro de um dos meus livros. Foi o suficiente para ele ter-se deslocado propositadamente ao colégio para travar-se de razões "filosóficas" com a infeliz criatura.
Épocas natalícias, pascais ou outras celebrações de carácter religioso, eram festas que passavam sempre ao largo da nossa casa. Jamais nos confessou o porquê de tão obsessiva intolerância. Presumo que tivessem sido ressentimentos contra a insensatez de meu avô, em face das ofertas excessivas aos clérigos...
Com vontade de apagar todas estas más recordações parti, um dia, sem saber o que me esperava, mas com uma certeza: um desejo inabalável de fugir. Sair daquela casa para sempre. Libertar-me, definitivamente, da persistente dúvida de ficar ou partir...
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