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RITOS E CELEBRAÇÕES DO CAMINHAR

por João Castro e Brito, em 07.04.22

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Ando pelas ruas de Lisboa, é uma quente tarde de sexta-feira, as ruas estão quase despovoadas e as raras pessoas que caminham são pessoas possuídas por uma tristeza amável.
Dos velhos muito velhos, apenas dois velhos muito velhos estão sentados num banco de jardim. Não conversam: trespassam-se com o olhar, estão a ver para lá de tudo, para aquém de tudo.
Um cego avança pelo fio do passeio, junto do qual estão estacionados dezenas de automóveis, enquanto avança com todos os outros sentidos despertos. Surge um indivíduo aos gritos:
- Ó sua besta, então não vê o que anda a fazer?
O cego pára, cativo de uma angústia tão imensa como um desprezo ou como um ódio. Ergue a bengala e agita-a:
- Onde é que você está, seu malandro, para lhe partir a cabeça?
Estão nisto: no domínio de uma espécie particular de indignação - a dos agredidos, que, afinal, são ambos. Ando e penso: é como se estivesse perto de mortos, sem manifestar o mínimo interesse por eles.
Outrora, a cidade era mais confortável e menos hostil. As pessoas, mesmo sem se conhecer, cumprimentavam-se. Não era a celebração da cortesia, nada disso: era, sim, um aceno, um sinal de presença. Agora, as pessoas parecem assustados retirantes de todos os sítios, porque se não sentem bem em nenhum deles. Há nas pessoas uma forma confusa de não estar em parte alguma e o desejo obscuro de estar em todas as partes. Cegos. São cegos sem bengala mas igualmente desencontrados. Os tempos tornaram as pessoas assim. As maneiras de comunidade, que ultrapassavam, pela fertilidade e pela constância, toda a nossa capacidade de imaginação, foram inclementemente derruídas. Vê-se: há outra gente que não é nova de rejeitar, anular e excluir os outros. O sentido da consagração da vida foi substituído pela exaltação do êxito, da pressa, da aspereza. Há predicados e entendimentos que foram banidos das relações; por exemplo: o da solicitude. E eu gosto de solicitude, uma discreta expressão da malícia, do humor e, até, da dignidade. Não há teoria que explique esse banimento.
Vejam só isto: quantos carrinhos de bebé, empurrados pelos pais jovens, se vêem hoje nas cidades?
Eu sei, senhores, ah!, se sei!, quanto foi penosa a batalha que nos conduziu a um patamar de liberdade. Porém, não devíamos, penso que não devíamos, ter deixado que muito do que é essencial se perdesse - até uma fatia de afecto, até uma pequena ração de amor.
Ando pelas ruas de Lisboa, é uma quente tarde de sexta-feira, as ruas estão quase despovoadas e as raras pessoas que caminham são pessoas possuídas por uma tristeza amável. O casal de velhos olhou-se e sorriu com doçura. Ela pegou nas mãos dele e afagou-as lentamente, sem deixar de o olhar, sem deixar de sorrir.
Lá no fundo, impercetível quase, um ponto se move, alarga-se aos poucos, contorna-se-lhe agora o vulto, o vulto é um homem grisalho, um homem de muito mundo, de passo largo e pesado. Olho-o e sou eu. Olho-me e sou a imagem devolvida de uma ostensiva paixão. E, de repente, simplificado e livre, percebo que sou o sujeito de uma oferta e de uma procura. A oferta do amor e a procura de felicidade.
Desesperadamente, como o cego ou como os velhos. Desesperadamente, como todos nós.
Do livro: Lisboa Contada pelos Dedos - Crónicas de Baptista Bastos (Abril de 2001).

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este país não é para velhos (1).png

Lembrei-me do fantástico "thriller" dos irmãos Coen, baseado no romance homónimo do americano Cormac McCarthy e protagonizado por excelentes actores, entre os quais destaco Tommy Lee Jones, Javier Bardem, Josh Brolin e Woody Harrelson.
Certo é que os "velhos" vivem cada vez mais; não há como desdizer tal facto. No entanto, julgo que esta evidência não significa que vivam melhor; pelo contrário!
A partir do ocaso da vida, os "velhos", de um modo geral, não usufruem de uma "velhice" despreocupada, com todas as condições que lhes garantam um final de vida tranquilo e com qualidade. Mereciam-na, certamente, mas há factores – seria fastidioso enumerá-los – que contribuem para que, muitos, apenas sobrevivam.
É inegável que o aumento da esperança média de vida nas últimas décadas, tem a ver, entre outras causas, com a melhoria dos níveis gerais de sanidade; não contando com a calamidade global provocada pelo novo coronavírus, a qual veio obrigar a uma revisão dos dados relativos à longevidade.
Todavia, penso que a sociedade não se preparou para as consequências desse benefício e os problemas são sentidos hoje, de uma forma acerba, pelos mais desassistidos.
Com o Outono, vem a solidão e a tristeza que lhe é inerente. É igual para todos: em aldeias desertificadas do interior e em centros urbanos. Tanto nuns como noutros, vemos "velhos" vetados ao abandono, alguns tolhidos nas próprias casas.
Não é raro encontrarem-nos mortos, só depois de alguém sentir o cheiro dos corpos em decomposição.
Contudo, a saúde, ou falta dela, é o lado mais dramático da sua ancianidade. Disposição que se veio a agravar com o surgimento da nova peste que parece ter vindo para transformar as rotinas sociais num novo normal.
Se o apoio médico já era deficiente e o preço dos medicamentos insuportável para muitos "velhos", imaginemos, nas actuais circunstâncias, casos particularmente angustiantes de "velhos" afectados por doenças degenerativas. Alzheimer, por exemplo:
Segundo um relatório de 2018, da OCDE, "Cuidados necessários: Melhorar a vida das pessoas com demência", Portugal encontrava-se no "final da tabela entre 45 países, com uma taxa de prevalência de demência de 19,9 casos por 100 mil habitantes, bem acima da média da OCDE (14,8). Pior, só o Japão, a Itália e a Alemanha."
Outra situação prende-se com a forma como os familiares dos "velhos" lidam com o seu envelhecimento, pois, não havendo condições para os manterem em casa, quando não os abandonam à sorte nas instituições hospitalares (públicas) por incapacidades de vária ordem, nomeadamente económica (acontecia antes do advento da pandemia) internam-nos em lares que, apesar de desenvolverem um trabalho louvável e dedicado, não dispõem de grandes meios nem de pessoal tecnicamente habilitado. Sabe-se, até, que há lares e centros de dia que os recebem, nas mesmas instalações, juntamente com outros que padecem de patologias degenerativas.
Quem gere essas instituições não tem soluções para esta concomitância. É claro que há algumas boas excepções, mas são pouco expressivas e um luxo no panorama nacional. Ademais, a crise pandémica veio despoletar mais casos de infracções graves na gestão dos lares, inclusive o encerramento de alguns "ilegais"...
A acrescentar a tudo isto e só para terminar, acho que já não há garantias de que as reformas cheguem para todos. Se essa perspectiva era quase uma miragem antes desta coisa nos atingir, agora, com os efeitos colaterais, resultantes, de muitas falências e consequente estagnação da economia, vão ser cada vez menos os que vão mantendo os seus postos de trabalho para sustentar um número crescente de "velhos", não obstante a Covid-19 ter dado uma "ajudinha" à Segurança Social (desculpem a impudência, "meus queridos velhos").
São crises, umas atrás das outras e já não acredito; este país não é, literalmente, para "velhos" e vai ser difícil ser para todos...

 

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