A propósito desta pergunta que se converteu num ícone da imagem do jornalista e escritor Baptista Bastos (1934 - 2017) e recorrente em conversas e leituras de carácter biográfico, apraz-me tornar ao assunto do 25 de Abril. Um tema melindroso para muita gente, certamente, mas sem esse acontecimento memorável e relevante para a história da nossa – ainda jovem – democracia, não seríamos a nação livre que somos hoje, malgrado os defeitos que lhe são atribuídos (à jovem democracia).
Não há sociedades perfeitas, se bem que hajam umas mais perfeitas do que outras, por muito incoerente que esta afirmação possa parecer...
Não obstante persistirem alguns ressentimentos (alguns será favor...), julgo que é saudável trazer à memória factos que nos enchem de orgulho, embora reconheça – insisto – que não é uma ideia consensual. Isto porque ainda há gente que pensa que no tempo da "outra senhora" é que era porreiro; o respeitinho era muito bonito e andava tudo a toque de caixa.
Apesar de ser um reflexo da nossa falta de cultura democrática (e não só), não é literalmente condenável: os políticos que têm tomado conta dos nossos destinos há quase meio século, têm contribuído de alguma forma para esse juízo. Isto, segundo o meu ponto de vista que até admito que seja um bocadinho desconforme.
Quase cinco décadas após o 25 de Abril, ainda há muitas feridas por sarar, nomeadamente as relacionadas com o processo de descolonização que, como é consabido, foi muito precipitado. Se calhar não podia ter sido diferente, dadas as circunstâncias históricas nimiamente explicadas. Contudo, isso teve um preço bastante elevado que foi o retorno apressado de muita gente "com uma mão à frente e outra atrás"...
Todavia, correndo o risco de estar errado e, por conseguinte, a minha opinião ser muito discutível, penso que foi um efeito inevitável da "revolução"...
Porém, como disse, não podemos, simplesmente, varrer esta data da nossa memória, como pretendem algumas alas mais "conservadoras" cá do burgo...
Logo, apeteceu-me contribuir, uma vez mais, para que este dia permaneça perene na lembrança daqueles e daquelas que valorizam o preço da liberdade. Assim, resolvi rescrever um artigo, com alguns anos, acerca dessa fantástica e exclusiva data para as gerações que a testemunharam, particularmente a minha que, na altura da "Revolução de Abril", combatia nos territórios ultramarinos...
Lembro-me perfeitamente – como se fosse hoje – de ter experimentado um sentimento novo: uma mistura de expectativa e alguma apreensão. Expectativa porque, acabado de regressar (provisoriamente?) de uma das mais ferozes frentes de guerra, senão a mais feroz, e tendo consciência de que não estava livre de volver ao mesmo lugar ou a outros, assim que começaram a surgir os primeiros relatos radiofónicos de um movimento militar, uma das minhas primeiras reacções, pelo menos a imediata, foi a de pensar que não ia voltar ao "ultramar". É uma reflexão que guardo com muita intensidade porque, para um puto com vinte anos, uma comissão militar em África não era a mesma coisa que participar num safári. Mas só cheguei a essa conclusão pouco depois de lá estar, pois, antes de abalar, julgava que ia à aventura para aquela África que via nos filmes em que o Johnny Weissmuller fazia de Tarzan.
Apreensão porque não sabia qual era o objectivo desse movimento – embora tivesse uma noção vaga de que era preciso dar outro rumo a isto – e não porque emergisse subitamente da minha razão algum tipo de consciência política ao ponto de julgar o regime que estavam a tentar derrubar, como o mau da fita. Longe de mim estar tão bem esclarecido como aqueles e aquelas que pagaram bem caro o seu combate à ditadura que dominava em Portugal.
Além dessa expectativa e alguma inquietação, tinha o conhecimento exacto de que o teatro de guerra donde acabara de regressar, a Guiné, estava de feição para o "inimigo" e, como tal, se o conflito prosseguisse, o desfecho ia ser ainda mais trágico para o nosso lado do que tinha vindo a ser até ali...
Lembro-me perfeitamente – como se fosse hoje – que antes de frequentar um curso militar na base aérea da Ota, para o qual havia sido convocado, fui colocado noutra base, a do Montijo, integrado em manobras militares no âmbito da OTAN.
No intervalo de um turno de trabalho nocturno, aproveitado para esticar o corpo em cima de uma tarimba, entre o dormitar e algum estado de sobreaviso – próprio de quem em tal estado (mesmo em simulacro) não deve adormecer profundamente – , senti um alvoroço vindo da área operacional que não distava muito do local onde eu descansava: um "Hammarlund" sintonizado no Rádio Clube Português, o emissor que a malta, por opção ou mero acaso, tinha no ar, difundia notícias contraditórias sobre um golpe militar que estava a decorrer em Lisboa. Não me apercebi imediatamente do que se tratava, até que o meu camarada Lopes me deu um safanão nas pernas para me instar a prestar mais atenção ao que estava a acontecer. "Será grave?" - pensei. Depois, com o raciocínio mais lesto e reforçado com um café quente e um cigarro, despertei da insensibilidade aos acontecimentos...
À medida que o tempo decorria e o dia ia clareando, a rádio continuava a transmitir marchas militares e música de intervenção, intercaladas com relatos exaustivos de última hora. Parecia que tinha caído o Carmo e a Trindade e, com efeito, o Carmo acabara de "cair"...
Passadas as indefinições iniciais, nos dias subsequentes, a situação parecia estar controlada pelas forças militares revoltosas. Tal suposição era baseada exclusivamente no que escutávamos e víamos na rádio e televisão porque ficámos retidos na unidade, não sei precisar durante quanto tempo. Certo é que ninguém entrava nem saía, por ordem do comando, talvez ainda indeciso em relação ao lado que pretendia apoiar. Penso, embora sem certeza, que essa ordem era extensiva à malta dos países que participavam no exercício e estava estacionada na base aérea.
Passado que foi o "período de ponderação" do comando da unidade, durante o qual as manobras militares foram mandadas às urtigas, tivemos ordem de soltura. Finalmente, chegara também para nós o dia tão esperado.
Lembro-me perfeitamente – como se fosse hoje – que atravessar o Tejo na lancha militar que me devolveu a Lisboa, foi algo fantasticamente incomum, relativamente à monotonia de outras travessias.
Talvez, sugestionado pelo momento particular, ao desembarcar, senti que pairava sobre as colinas da cidade um efeito de luz diferente, magnífico até, a que ao cheiro a maresia se juntavam outros indescritíveis elementos aromáticos. Penso nessa sensação agradável com alguma nostalgia, mas não muita. Os anos ajudaram-me a obter algum calejo emocional e a olhar para trás com uma visão menos romântica do maior acontecimento da nossa História, no meu tempo.
Mas – continuando – onde notei maior diferença foi nos semblantes e atitudes das pessoas com as quais me cruzei; acima de tudo, nos seus sorrisos abertos. Inclusive – algumas – pagavam com beijos, abraços e cravos a generosidade dos homens fardados que lhes tinham acabado de restituir a liberdade e a confiança. No fundo, também me senti participante nessa maravilhosa manifestação de exultação popular, mesmo tendo a noção de não ter sido actor e tampouco figurante no memorável acto libertador. Foi como se fossem os primeiros dias de todas as esperanças, com a particularidade sui generis e, quiçá, única no mundo, de os militares estarem ao lado de um povo.
A esta distância temporal, continuo convicto de que valeu a pena um punhado de capitães ter lutado (por obra do destino ou acaso e sem muita efusão de sangue), para mudar o nosso país.
Muito ficou por fazer, evidentemente, e ficamos com alguma mágoa ao constatar que, entre outras situações de injustiça – para usar um termo suave – , questões como a sustentabilidade e equidade sociais ainda são motivo para debates políticos muito acirrados entre forças partidárias contrárias, passados quase cinquenta anos de "democracia"...
Mas pronto, somos livres graças a Salgueiro Maia e a outros heróicos Capitães de Abril. O livre-arbítrio é uma prerrogativa que nos cabe desde então. Valha-nos isso...