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CASOS JUDICIAIS IMPROVÁVEIS

por João Castro e Brito, em 27.11.21

o carteirista.jpg

Baseado no romance homónimo de Robert Burnier, vá-se lá saber porquê, "O Carteirista" (Pickpocket, para inglês ver) narra a estória atribulada de dois corruptos que se cruzam algumas vezes, um no papel de corruptor e outro no papel de corrompido (não confundir com cu rompido, não obstante serem palavras homófonas).
Como em todas as estórias que metem corruptores e corrompidos, há quem os considere boas pessoas e, às vezes, até vítimas de suposições infundadas, torpeza ou das circunstâncias.
Bem diz o povo, e muito sabiamente, que "a ocasião faz o corrupto", ou "corrupto que rouba a corrupto tem cem anos de perdão (não rimam, mas que se lixe)". Estes aforismos acabam por ter alguma lógica; quando mais não seja, aforística.
Outros anseiam vê-los na cadeia durante muito tempo, mas, enfim, é como tudo, pá (não confundir com "eu como tudo, pá!" em alentejano ou algarvio)!
A obra é uma abordagem centrada, em primeiro lugar, num caso de absolvição sui generis, dado que só se conheceu o seu desfecho após um longo processo que se arrastou durante mais de trinta anos, com tudo o que isso pesa, em termos de ansiedade e incerteza, para os infelizes agentes delituosos e respectivas famílias.
Uma das personagens e, de certo modo, o sujeito fulcral da obra, é um indivíduo de aparência cuidada, ar inocente e um "bon vivant". O seu nome é Artur Salgado Inocêncio, carteirista de profissão e corrupto nas horas vagas.
Este ex-provável meliante, de presumível ascendência dolicocéfala por parte do pai e mística por parte da mãe, protagoniza o autor confesso de um violento crime de assalto à mão desarmada efectuado numa manhã remota de 4 de Fevereiro, cujo ano foi omitido de forma inexorável e sem qualquer explicação do autor, mas, do mal o menos, "é só fazer as contas".
O referido assalto havia sido perpetrado na estação de metro da Rotunda (actual Marquês de Pombal), na pessoa de uma senhora idosa, com cerca de noventa e sete anos, que se aprontava para entrar numa carruagem com destino a Alvalade. Desse ferino e despropositado crime (a mala da velhinha continha apenas um lencinho de mão com ranho seco, algumas moedas de tostão dispersas, uma nota de vinte paus muito amarrotada, um terço e dois preservativos por estrear) resultaram ferimentos graves na pobre anciã, a qual foi prontamente socorrida por populares que imediatamente ligaram para o 115 (na altura ainda não existia o 112 nem o 808242424) que, sem perder tempo, deslocou uma ambulância para o local, três horas depois.
De pouco serviu a prontidão do 115, pois a senhora jamais recuperou das pisaduras de que foi alvo, até hoje, encontrando-se, por consequência, em estado de coma induzido a seu pedido.
Durante a fase de julgamento, a defesa, astuta como convém, apresentou uma dúzia de testemunhas, sendo que nenhuma delas se lembrou do que tinha feito no dia anterior, quando mais no longínquo dia 4 de Fevereiro.
A acusação bem insistiu no sentido das ditas tentarem avivar a memória, mas foi em vão, nicles de bitocles; bateu o pé, rabujou, chamou nomes, mas daquelas bocas não saiu fosse o que fosse, tampouco, uma vogalzinha, ou uma consoante, nada de nada.
A defesa pediu que fosse declarada a inefabilidade crono-jurídica (penso que esta palavra composta não existe, mas que se lixe) do momento e a acusação pediu baixa devido a uma crise de rinite alérgica do Delegado do Ministério Público. Contudo, o pedido foi indeferido para não adiar o julgamento sine die.
Foi requisitada, sem demora, a presença de um Subdelegado do Ministério Público, mas como tardava a substituição do Delegado pelo Subdelegado, por este último se encontrar a banhos nas Ilhas Seychelles (não confundir com a Ilha Seixal e muito menos com município do Seixal), o colectivo requereu a presença de um Inspector Adjunto Principal, da Inspecção-Geral, em serviço na Subdelegação; só para desenrascar.
O meritíssimo Juiz da comarca, Doutor Honoris Aadhunik Chandrachur, de nítida ascendência escocesa, não só absolveu o réu desse crime hediondo, como ainda confessou que tinha sérias dúvidas sobre a ocorrência do assalto, no dia em causa, porque podia ter-se dado um dia antes ou um dia depois. Para além disso, o douto e respeitável juiz reconheceu que Artur Salgado Inocêncio tinha transmitido até ali provas inequívocas de honestidade e, acima de tudo, de modéstia à parte e, por isso, dignas de reconhecimento.
E, ao concluir o acórdão, obviamente com o acordo de todos e a abstenção da acusação, salientou: «Vá para casa e livre-se de praticar assaltos em dias de feriado, homem! Para mais, sendo o dia 4 de Fevereiro; por amor da Santa!» - sublinhando que trabalhar em dias santos era crime passível de julgamento e, no máximo, repreensão agravada com recurso de agravo (Decreto Lei nº 169/17, Artigo 25º), rematando que desta vez deixava passar, realçando que era uma vez sem exemplo.
No mesmo processo: "Operação Mão de Vaca", como vem referido, a páginas tantas, nesta excelente criação imaginária, temos, então, outro corrupto, um falsário, personagem de índole duvidosa, como todos os falsários, chamado Joaquim Sócras da Silva, sobre o qual recaíam fortes suspeitas de crimes de peculato e falsificação de notas de mil escudos. O sujeito havia sido condenado preventivamente a prisão domiciliária numa conhecida hospedaria de Évora e só fora libertado depois de caucionar o pagamento de uma bica e um bagaço a uma juíza e um garoto ao oficial de justiça. Tudo isto em consequência de fortes indícios do seu envolvimento em outros ilícitos para além dos previstos na lei (há aqui uma incoerência, peço desculpa). As suspeitas eram tão evidentes que ele próprio - passe a redundância - , em dado momento, chegou a pensar, embora não o dissesse, que os cometera.
Os seus advogados entenderam que a pena era acrónica e, por esse facto, inadmissível, injusta e desprestigiante para o alto gabarito e honestidade do seu constituinte; sobretudo, uma enorme afronta contra a sua honra.
O suspeito, ao tomar conhecimento do recurso, teve um breve momento de desalento e, embora fosse agnóstico, exclamou: «Valha-me Deus, onde é que isto vai parar? Porque é que estão todos contra mim?»
Quase no epílogo da estória e resumindo toda a acção deste drama narrativo, pois já estou com uma calanzice do caraças, lê-se a tantas outras páginas que o processo da "Operação Mão de Vaca" foi arquivado, embora a senhora idosa continue em estado de coma induzido. Porém, foi imediatamente reaberto outro com o nome "Operação Grão de Bico", por suspeita de arquivamento, mais a mais em arquivo morto, de pedidos sucessivos de inquérito, formal e atempadamente formulados pelo Ministério Público.
Parece que esse tal Inspector Adjunto Principal da Inspecção Geral, veio agora alegar, apesar de alguma hesitação, mas querendo mostrar serviço, ao que parece, que afinal o suposto meliante pode estar implicado em vários atropelamentos de bicicleta, devido à utilização mal calculada do método do esticão para sacar objectos, nomeadamente malas de senhora. Bom, mas estas suspeitas ainda estão por confirmar.
E pronto, não escrevo mais porque isto, hoje, correu-me mal pra caraças!

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