A família estava reunida para celebrar mais uma festa de Natal. Coberta pela linda toalha de croché, bordada pela avó Etelvina ao longo dos últimos noventa e sete anos, nada faltava em cima da mesa. Era, efectivamente, uma mesa farta.
Após terem jantado o bacalhau com todos, como manda a tradição, deliciavam-se agora a devorar as doçarias próprias da quadra.
Entretanto, sem que estivessem à espera de visitas, bateram à porta.
O chefe de família, visivelmente contrariado e apreensivo (pudera!), deixou cair da boca um pedacinho de filhó, prontamente interceptado pelo cão de estimação.
Quem é que se lembraria de interromper um momento familiar tão particular, ademais sem ser convidado e pior: quase à meia noite?! Perguntou quem era:
«Sou o Pai Natal, muito boa noite e paz na terra aos homens de boa vontade! - foi a resposta do lado de fora - Pretendo ir para Boliqueime, mas, como está muito nevoeiro e escuro como breu, acho que me enganei no caminho, valha-me Deus!»
«Eh pá, vai enganar outro, meu, essa já não pega! - exclamou o chefe de família, soltando mais uma miuçalha de filhó, prontamente interceptada pelo cão de estimação - Quem é que ainda acredita no Pai Natal, hã?»
«Eu!» - gritou a criança sem hesitar.
No entanto, apenas por descargo de consciência - afinal celebrava-se mais uma quadra de amor, fraternidade, solidariedade e coisas afins - , entreabriu a porta e todos (menos o menino) desataram a rir desbragadamente. Diria até indecorosamente (passe a redundância). Do lado de fora assomava-se uma figura tragicómica, quase tétrica, trajando o costumário fato vermelho, com um barrete de cor condicente e umas longas barbas brancas, tal e qual o Pai Natal, só que chupado das carochas e aparentemente mal asseado. Ora, toda a gente sabe que o Pai Natal quer-se leitoado, lustrino e limpinho, o que não era, propriamente, o caso. Apesar de tudo, o pobre lá tentou ser o mais convincente que pôde:
«Embora seja difícil de acreditar, garanto-vos que sou o Pai Natal, juro, eu seja ceguinho!»
«Está bem; e eu sou o professor Marcelo!» - Respondeu, sarcástico, o primo Albino que até sofria de albinismo, embora nunca tivesse escalado, sequer, um monte. Mais a mais aquela do professor Marcelo até foi descabida porque é evidente que o homem é bem tisnado!
Feitos alarves, continuaram a rir-se do pobre velhinho que afirmava com toda a veemência, ser o Pai Natal...
Cansados de tanto rirem, deram-lhe meia dúzia de broas castelares e um euro, só para se verem livres dele. Além disso, o miúdo ficou muito assustado e confuso com a figura grotesca do Pai Natal. Para não dizer da avó Etelvina que esteve prestes a engasgar-se com uma passa entalada no gorgomilo, por causa da risota. Temendo que desse algum fanico à velha e lhes estragasse o Natal, fecharam imediatamente a porta na cara do pobre homem, tendo este ficado sem um bocadinho de barba por via da entalação.
Fatigado e muito triste com a falta de solidariedade das pessoas e da Pátria madrasta que o deixara com uma reforma tão miserável que nem lhe dava para as despesas, o Pai Natal deu corda ao burro (queriam renas em Portugal? Dah!) e lá foi a caminho de Boliqueime, afinal a sua terra natal, ao invés da Lapónia. Afinal, o homem é cá dos nossos!