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A PRIMA FELISMINA

por João Castro e Brito, em 14.12.14

a prima felismina 1.jpg

Minha querida prima Honorina, espero que estejas bem de saúde, na companha dos teus, que a gente cá vai indo menos mal, graças a Deus.
Há tempos que não te escrevo e quero pedir-te muitas desculpas; e juro-te pela alminha da avó Felisbela que não são esfarrapadas. Coitadinha, já está como há-de ir, sabes tu bem!
Por outro lado não é por mal; eu gosto muito de ti, mas é raro apanhar um tempinho pra pôr a escrita em dia e olha, aproveito agora que estamos quase no Natal pra te dar notícias da gente.
Este ano fartámo-nos de matutar acerca do destino das nossas férias. Como o carcanhol já nem deu pra ir até às Berlengas, decidimos, então, seguir aquele velho conselho da televisão de ir passar férias cá dentro e ficámo-nos pela Buraca. E viva o velho! Também, com a pensão de miséria que recebemos, imagina, n'é? Depois, mesmo que a gente saísse de cá, havia a chatice da língua. Nem eu, nem o meu Horácio pescamos uma palavra de estrangeiro. E é uma pena porque nunca visitei o estrangeiro, a não ser aquela vez em que fomos à Ilha de Tavira.
Às vezes, dão umas coisas na televisão sobre as belezas de Portugal e eu fico encantada. Não desfazendo da Buraca que, aqui nas redondezas, modéstia à parte, não tem nada que se lhe compare. Nem mesmo a Reboleira!
Olha, mudando de assunto: a avó Felisbela passou as passas do Algarve com dores nas costas e o médico de família disse-lhe que precisava de apanhar muito sol e ela, como é muito esperta, lembrou-se do letreiro de néon da leitaria do senhor Hermenerico e não foi de intrigas: passou todas as noites de Verão debaixo do letreiro da "Flor da Buraca", vê lá tu! E não é que melhorou?! Agora diz que lhe doem as pernas, mas, com receio de fazer tratamentos por causa do frio intenso que se tem feito sentir, arranjámos-lhe um calorífero, daqueles de resistência, e ela tem-se sentido muito melhor, apesar das queimaduras de quarto grau.
Mas nem tudo está mal por aqui, priminha, olha, sabes, o meu Horácio esteve a passar um tempinho na Penitenciária. Acho que foi por causa de uns "póses" mais umas pistolas de alarme transformadas e uns canivetezitos que ele tinha para ali, coisas que, pelos vistos, nem eram dele; disse que foi um amigo que lhe pediu para guardar, mas, mesmo assim, veio cá a Judiciária e levou-o. Gostaram tanto dele que o convidaram logo a passar lá seis meses, vê lá tu! Pensando bem, foi uma grande ajuda ao orçamento familiar. Menos uma boca a comer dá muito jeito, embora os morfes continuem a mingar cá por casa.
Olha, prima, são favores que a gente não esquece, sabes? E depois o meu Horácio disse-me que as instalações e o rancho eram muito bons.
Como ele gostou muito de lá estar, até se prontificaram para lhe prolongar a estadia, já viste!
O meu homem é assim a modos bruto que nem uma porta, mas quando quer, sabe ser arrebatador e cativante, benza-o Deus Nosso Senhor!
De maneiras que a porta ficou aberta, como lhe disseram os senhores inspectores e, quem sabe, da próxima vez a gente vá toda junta, vamos ver.
Também não me posso queixar muito porque estive a banhos na casa da dona Hortense do primeiro esquerdo, por via do estupor do nosso esquentador que está sempre avariado. Já me chateia incomodar a vizinha, mas ela está sempre prontinha a ajudar-nos que até parece mal recusar, não achas?
Além disso, aproveitei para viajar muito de autocarro. Fartei-me de ir visitar a minha cunhada Idalina ao Santa Maria, às voltas com uma hepatite. As visitas ficaram-me um bocadinho carotas, mas parecia mal não lhe levar nada; e olha, fiz das tripas coração, sabe Deus com que sacrifício! Levava-lhe umas bolinhas de Berlim e um vinhinho abafado, coisinhas pelas quais ela se pela!
E prontos, prima, tirando isto, cá vamos andando. O meu Horácio evita, ao máximo, comer cá em casa, coitado!
O senhor Isaías já não nos fia mais mercearia, nem o senhor Fernando do talho. A esse pedi umas pelinhas de frango, por caridade, pra fazer uma canjinha e nem o raio das peles me deu, prima, vê tu bem o somítico! Peixe, só lhe sinto o cheiro quando passo pela praça. E é assim; olha, paciência, vai-se para a sopinha do Sidónio, sempre vimos de lá mais aconchegados.
Por hoje é tudo. Tem um santo Natal e recebe muitos beijinhos desta tua prima que te estima e s'assina,
Felismina

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