
Durante a permanência de um denso manto de nevoeiro sobre a cidade, daquele tipo de nevoeiro que não deixa vislumbrar um palmo à frente do nariz, conquanto o Sol já se erguesse alto e caldo, ocorreu um fenómeno que ainda hoje o desassossega.
Desembargador reformado e viúvo, Ezequiel Cipriano Canário, morador na Travessa do Pelourinho, Nº15, rés-do-chão Dtº, ao virar a leitaria da esquina à Lapa, de quem me reservo o direito de manter no anonimato para preservar a sua privacidade, deambulava ali para os lados do Jardim da Estrela, quando ouviu uma voz feminina murmurar: "és tu, Sotero?". Sem conseguir identificar a sua proveniência, sentiu um gelo súbito percorrer-lhe a medula espinhal, acompanhado de tremura intensa na perna (era perneta). Ficou de tal modo abalado que não a conseguiu dominar e as gotículas que lhe afloraram os poros das regiões frontal, occipital e parietal depressa congelaram, embora a temperatura à sombra rondasse os trinta graus.
Apesar do enorme temor e tremor que sentiu com o estranho episódio, não se pôs a cismar naquilo e concentrou a atenção no que se estava a passar, não muito distante do local onde se encontrava; talvez a uns três metros, se tanto.
Tendo apurado melhor o nariz, embora precisasse mais de óculos, não obstante o nevoeiro já se ter dissipado, divisou um grupo de pessoas em passo solene e a toque de caixa, o qual lhe pareceu ser da Irmandade dos Fiéis de São Bento, pela ladainha que o vulto da frente vinha a invocar ao Santo. Porém, tal suposição não se confirmou quando passaram perto do seu curto campo de visão.
O cortejo era encabeçado pelo padre Américo, acompahado por um rancho de gaiatos, o que o deixou algo pasmado, pois julgou tratar-se de uma visão fantasmagórica.
Visivelmente perturbado, mas sem dar nas vistas, esperou que passassem, não fosse o acontecimento uma ilusão do espírito; algo do outro mundo.
Depois de ter presenciado a cena (em boa verdade, bastante paranormal) e ainda mal refeito do que acabara de testemunhar, saiu do esconderijo e percorreu o caminho pisado por aquelas personagens insólitas. Por lá encontrou vários objectos, entre os quais dois bacios de fina porcelana portuguesa, Bellavista, um em estilo rococó e outro em estilo richichi, uma chávena chinesa, efectivamente made by RPC, com um restinho de chá, ainda fumegante, duas celas do melhor couro andaluz, um par de botas de montar, em calfe, ambas do pé esquerdo, uns óculos de Sol Honório Hernani aparentemente novos, um lencinho de assoar, vermelho, debruado com fiozinhos de oiro a preceito e a exalar um suave perfume a água das rosas e, finalmente, excrementos de equídeo, o que achou muito estranho, pois não vira cavalos, tampouco éguas, muito menos burros. Todavia, podem ter sido mulas ou machos que passaram despercebidos, vá-se lá saber.
Presumindo que tudo aquilo já se encontrava ali antes da passagem do cortejo, excepto um pauzinho de gelado "Olá" (passe a publicidade) que guardou religiosamente, regressou a casa cheio de inquietude e, simultaneamente, excitação desusada pelo achado.
«Repara como o nevoeiro nos reserva surpresas interessantes!» – disse à falecida, exibindo triunfalmente para o vazio o pauzinho de gelado.