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UM CONTO DO VIGÁRIO

por João Castro e Brito, em 12.12.23

 

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Havia adormecido no confessionário, enquanto a boa da Natércia dos Prazeres insistia em pedir perdão pelo pecado da carne, cometido de segunda a segunda, a que se dedicava com o canastrão do sineiro, aliás paraplégico da cintura para cima, o que não tinha qualquer relevância porque o sino deixara de tocar há muito tempo por falta do badalo. Por outro lado, só o facto do sineiro ser paraplégico da cintura para cima já era, segundo o ponto de vista da boa da Natércia dos Prazeres, um milagre de Deus.
De repente, ouviu chamar por ele. Depois, um alarido. E uma voz distinta: "é ele, eu bem o pressenti, é ele...está lá dentro!"
Como não pronunciaram "ele(1)" com letra maiúscula, percebeu que não era Ele, mas o outro.
Saiu do confessionário, pôs um ar fero, avançou para a sacristia, de onde provinha o alvoroço, e notou imediatamente, pelo cheiro intenso a enxofre, que o diabo, o próprio, estava perto.
"Deixem-me passar!" – ordenou imperioso, mas, aparentemente, aborrecido por lhe terem interrompido a sesta. Forçou a porta da sacristia, entrou e encarou o mafarrico que, a custo, chispava fumo e dava ares de não poder com uma gata pelo rabo de cobra sagitada. Bastou-lhe um olhar fugaz para constatar que o pobre diabo estava, realmente, nas lonas.
"Que diabo, estou fartinho de te dizer para não vires, cá, acima dentro das horas de expediente...olha bem para esse buraco que fizeste!..." – interpelou-o.
"Queira Vossa Vigarice desculpar-me, mas a merda do elevador está a precisar de manutenção e acabou-se o cabrão do gás! Q'é que Vossência queria que eu fizesse? Milagres, só no Céu!
Ademais, os pecadores e as pecadoras estão à fresca e começam a pensar que aquilo é a praia do Paraíso, caraças! – justificou-se, a deitar os bofes pela boca.
"Ó diabo, era o que me faltava agora! Eu aqui a ameaçá-los com as chamas eternas e tu, lá em baixo, a dares-lhes banhos de mar...leva já duas botijas para as primeiras impressões...raspa-te! E proibo-te, terminantemente, de praguejares na casa do Senhor!
Ajudou-o a carregar com elas até ao buraco, e preparava-se o demo para recolher ao inferno, quando se lembrou de lhe perguntar: "E enxofre"? Ainda tens muito?"
"Já está abaixo da reserva, saiba Vossa Vigarice!..."
"Deus te valha, meu diabrete!..." – murmurou sem querer, enquanto abria uma arca para retirar vinte e cinco quilos de enxofre em pó que o maligno agradeceu, empenhadamente.
Ele que sempre foi um defensor do diálogo com o inimigo, tapou o buraco com cuidado, aspergiu o local com água-benta, abriu a porta, comunicou aos crentes que estava tudo controlado e regressou à quietude do confessionário, onde, entretanto, a boa da Natércia dos Prazeres não se havia apercebido da sua ausência e continuava empenhada em pedir perdão pelas suas "confrontações" com o sineiro, da cintura para baixo.

in UM CONTO DO VIGÁRIO porque, efectivamente, é uma obra só com um conto e quem escreve um conto, a mais não é obrigado, como dizia alguém, não sei quem.

(1) "Ele" (com maiúscula), na tradição judaico-cristã, é o anjo rebelde (Satanás), que foi expulso do Céu e desceu ao Inferno. No entanto, atribuí-lhe o estatuto de uma entidade menor, nesta estória. Meu caro Lúcifer, queira aceitar, desde já, as minhas mais sinceras desculpas.

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DEUS, O DIABO, O ENGENHEIRO E OS MALANDROS DO COSTUME

por João Castro e Brito, em 20.10.21

deus, o diabo, o engenheiro e os malandros do cost

"Um engenheiro morreu e chegou às portas do Céu...
Antes de prosseguir com a narrativa, devo esclarecer os eventuais leitores e leitoras de que é do conhecimento geral que os engenheiros, devido ao seu estatuto de incorruptibilidade, quando dão o peido mestre (entenda-se derradeiro suspiro), vão direitinhos para o Paraíso sem passarem pelo Purgatório.
A isenção do juízo final está contemplada em Jeremias, versículo 37:15-16, mais coisa, menos coisa. Prossigamos, então:
São Pedro, mazelado, cansado de séculos de existência e desconfiado desde que o seguro morreu de velho, antes de franquear as portas ao engenheiro, procurou a sua ficha no arquivo geral da ordem dos engenheiros, mas, como o programa informático do Céu estava um bocadinho desorganizado por via da sua obsolescência, não a conseguiu encontrar. Então, disse ao engenheiro:
«Lamento, mas não podes entrar; a tua ficha deve ter-se extraviado!»
O engenheiro, perante a recusa do guardião do Céu, não teve outro remédio senão descer vários lances de escada até chegar às portas do Inferno. O espertalhão do mafarrico nem pestanejou; ofereceu-lhe alojamento de bandeja e demais apoio logístico.
Todavia, após ter sido instalado, faltava ali qualquer coisa, algo onde se pudesse sentir mais proactivo e, claro está, mais realizado. Só assim poderia garantir rentabilidade ao seu espírito sagaz e empreendedor. A necessidade aguça o engenho, como dizia alguém, cujo nome já se me varreu.
É preciso não esquecer que o nosso pobre engenheiro foi parar num lugar inóspito, logo sem grandes condições de habitabilidade. Daí ser exigível, pelo menos, uma zona de conforto decente para poder trabalhar. Isto, não obstante toda a gente saber que o Inferno é um local indecente.
O tempo foi passando e já existiam alguns projectos materializados, entre os quais um de segurança contra incêndios, um térmico, um acústico e também sistemas altamente sofisticados de monitorização de cinzas e ar condicionado. Foram também montados os mais diversos aparelhos electrónicos, redes de telecomunicações, programas de manutenção e, evidentemente, um sistema rigorosíssimo de controlo de qualidade, não fosse a ASAE meter lá o bedelho só para chatear.
Perante a evidência de melhorias tão concretas, o engenheiro passou da condição de degredado a reputado.
Um dia, Deus lembrou-se de fazer uma vistoria à Secretaria Geral do Céu e, estranhando a falta de reclamações que habitualmente chegavam das bandas do Inferno, ligou para o Demónio e perguntou:
- «Então, como é que vão as coisas por aí?»
- «Agora, estão bem melhores do que estavam! Temos vários programas de melhoria contínua, implementados no contexto da prática infernal, naturalmente, mas tudo a funcionar a cem por cento, graças a mim e aos projectos deste fantástico engenheiro que caiu do Céu! Se quiseres algumas indicações pormenorizadas acerca da implementação destes sistemas, manda-me uma mensagem para ohdiabo@vilmail.com, ok?
Isto, agora, só aqui para nós que ninguém nos ouve: Francamente, não sei porque é que ainda não reformaste o Velho, pá, está, cada vez mais, senil!»
- «Hã?!... Vocês têm aí um engenheiro?! Mas, isso é um autêntico ultraje! O lugar dele é aqui no Céu, caraças! Está registado na CRC (Conservatória do Registo Celestial) e tu assinaste por baixo. Manda-o pra cima se fazes o favor!»
- «O quê?! Nem pensar! Este engenheiro é uma mais valia, pá! Estás parvo ou fazes-te? Garanto-te que vai ficar comigo, eternamente, e nem se fala mais no assunto; era o que faltava!»
- «Manda-me esse gajo pra cima, senão lixo-te com uma pinta do caraças! Abro-te um processo daqueles que se podem arrastar por muitos e longos anos (passe a redundância)!»
O Diabo riu desbragadamente, feito um velhaco, como é seu apanágio, e retorquiu:
- «Ah, sim? Então, só por curiosidade, pá, diz-me uma coisa: Onde é que vais arranjar um advogado, um juiz ou até, mesmo, um procurador, aí no Céu, diz-me? Recambias essa gente toda para aqui e agora queres fazer omeletas sem ovos, n'é?! Ora!»"
Nota: Este texto foi-me enviado, há uns tempos, não muito distantes, pelo meu querido e saudoso amigo "Zé do balão", do qual só me restam boas memórias. Estejas onde estiveres: Céu ou Inferno (nunca no purgatório porque não é carne nem peixe), passe a alegoria, espero reencontrar-me contigo, um dia destes ou, quiçá, daqui a uns anitos, não obstante ser um céptico militante desde a primeira hora...

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