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Criei este blogue com a ideia de o rechear com estórias rutilantes, ainda que às vezes embaciadas. Penso que são escritas sagazes e transparentes, embora com reservas e alguma indecência à mistura. No entanto, honestas.
Havia adormecido no confessionário, enquanto a boa da Natércia dos Prazeres insistia em pedir perdão pelo pecado da carne, cometido de segunda a segunda, a que se dedicava com o canastrão do sineiro, aliás paraplégico da cintura para cima, o que não tinha qualquer relevância porque o sino deixara de tocar há muito tempo por falta do badalo. Por outro lado, só o facto do sineiro ser paraplégico da cintura para cima já era, segundo o ponto de vista da boa da Natércia dos Prazeres, um milagre de Deus.
De repente, ouviu chamar por ele. Depois, um alarido. E uma voz distinta: "é ele, eu bem o pressenti, é ele...está lá dentro!"
Como não pronunciaram "ele(1)" com letra maiúscula, percebeu que não era Ele, mas o outro.
Saiu do confessionário, pôs um ar fero, avançou para a sacristia, de onde provinha o alvoroço, e notou imediatamente, pelo cheiro intenso a enxofre, que o diabo, o próprio, estava perto.
"Deixem-me passar!" – ordenou imperioso, mas, aparentemente, aborrecido por lhe terem interrompido a sesta. Forçou a porta da sacristia, entrou e encarou o mafarrico que, a custo, chispava fumo e dava ares de não poder com uma gata pelo rabo de cobra sagitada. Bastou-lhe um olhar fugaz para constatar que o pobre diabo estava, realmente, nas lonas.
"Que diabo, estou fartinho de te dizer para não vires, cá, acima dentro das horas de expediente...olha bem para esse buraco que fizeste!..." – interpelou-o.
"Queira Vossa Vigarice desculpar-me, mas a merda do elevador está a precisar de manutenção e acabou-se o cabrão do gás! Q'é que Vossência queria que eu fizesse? Milagres, só no Céu!
Ademais, os pecadores e as pecadoras estão à fresca e começam a pensar que aquilo é a praia do Paraíso, caraças! – justificou-se, a deitar os bofes pela boca.
"Ó diabo, era o que me faltava agora! Eu aqui a ameaçá-los com as chamas eternas e tu, lá em baixo, a dares-lhes banhos de mar...leva já duas botijas para as primeiras impressões...raspa-te! E proibo-te, terminantemente, de praguejares na casa do Senhor!
Ajudou-o a carregar com elas até ao buraco, e preparava-se o demo para recolher ao inferno, quando se lembrou de lhe perguntar: "E enxofre"? Ainda tens muito?"
"Já está abaixo da reserva, saiba Vossa Vigarice!..."
"Deus te valha, meu diabrete!..." – murmurou sem querer, enquanto abria uma arca para retirar vinte e cinco quilos de enxofre em pó que o maligno agradeceu, empenhadamente.
Ele que sempre foi um defensor do diálogo com o inimigo, tapou o buraco com cuidado, aspergiu o local com água-benta, abriu a porta, comunicou aos crentes que estava tudo controlado e regressou à quietude do confessionário, onde, entretanto, a boa da Natércia dos Prazeres não se havia apercebido da sua ausência e continuava empenhada em pedir perdão pelas suas "confrontações" com o sineiro, da cintura para baixo.
in UM CONTO DO VIGÁRIO porque, efectivamente, é uma obra só com um conto e quem escreve um conto, a mais não é obrigado, como dizia alguém, não sei quem.
(1) "Ele" (com maiúscula), na tradição judaico-cristã, é o anjo rebelde (Satanás), que foi expulso do Céu e desceu ao Inferno. No entanto, atribuí-lhe o estatuto de uma entidade menor, nesta estória. Meu caro Lúcifer, queira aceitar, desde já, as minhas mais sinceras desculpas.
É uma expressão popular que, porventura, as gerações mais novas desconhecem. Isto porque caiu, naturalmente, em desuso. E digo "naturalmente" com muita convicção, dado que, como diz o Poeta, "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades".
"No meu tempo", aquele longínquo tempo em que o feijão era a cinco tostões o litro, era comum dizer-se esta frase quando alguém ficava de boca-aberta (ou cara à banda) com algo insólito ou com um acontecimento imprevisto.
Penso que as "coisas do arco-da-velha", também têm alguma relação com o "tempo em que o feijão era a cinco tostões o litro". Ambas fazem referência a um passado remoto que a época em que vivemos pretende apagar da memória colectiva. Porém, aceitável porque, entretanto, foram substituídas por expressões mais consentâneas com estes tempos.
É claro que algumas coisas, inexplicáveis à luz da razão, passaram a ser invenções ou histórias da carochinha; petas de raiz popular em que muita gente ainda acredita piamente, por via da sua iliteracia e, por consequência, temor ao desconhecido. Contudo, digo-o sempre com alguma reserva porque, por estranho que pareça, também sou muito temeroso. Contudo, isto dava outra estória...
As línguas dos povos também vão assimilando novos modos de comunicar; alguns são importados, mas isso é uma mais valia e também um resultado da globalização.
Afinal, são as comunidades linguísticas que fazem com que as línguas permaneçam vivas, e em constante mudança, e não os acordos ortográficos obscuros.
A nossa, com a passagem de povos oriundos de outros continentes desde tempos imemoriais, até antes da fundação da nacionalidade, está bem viva e recomenda-se. Actualmente, é o produto de uma sociedade multicultural. Por conseguinte, mantém-se sempre aberta a novas introduções de hábitos e costumes, mormente de origem oculta, mas nem por isso menos essenciais para o enriquecimento dos nossos léxico linguístico e modus vivendi.
Mas, voltando ao "meu tempo", ainda se conseguem ouvir da boca de algumas pessoas, particularmente de idade avançada, frases do tipo: "no meu tempo o respeitinho era muito bonito" e outras frases mais ou menos idênticas. Todavia, como disse, têm caído inevitavelmente em desuso. Algumas foram substituídas e outras assumiram uma nova importância.
Concentremo-nos no "arco-da-velha" e nas várias interpretações em torno do seu significado:
Por volta do século XIX, esta expressão - com carga bíblica - servia para simbolizar o arco-íris. Uma de várias explicações teria a ver com a "arca de Noé" e o "dilúvio" ou seja: após a "inundação universal", consta que Deus fez o arco-íris para celebrar um pacto com o Homem: uma espécie de tratado de não agressão celebrado com Noé.
Uma das cláusulas referia que o Criador não voltaria a enviar outra grande enxurrada tão devastadora como aquela que todos conhecem dos textos sagrados. No entanto, parece que Noé não leu aquilo até ao fim, por preguiça ou falta de visão, e assinou o documento às cegas. Não leu, sobretudo, nas entrelinhas. Mais a mais, naquele tempo, ainda não tinham inventado os óculos para ler ao perto e a malta limitava-se a passar os olhos pela papelada, o que era muito chato para o contraente, como é fácil de intuir.
Outra explicação para isto, teria sido a suposição generalizada de que Noé não sabia ler nem escrever, o que, até hoje, tem permanecido um mistério.
Assim, o resultado dessa confiança excessiva em Deus está à vista: dilúvios, furacões, tornados, maremotos, terramotos, erupções vulcânicas, vírus e outras catástrofes tramadas são coisas que não têm faltado por esse mundo fora; e são cada vez mais devastadoras. É claro que se debatesse isto com uma pessoa religiosa, essa pessoa iria certamente contrapor com aquele aforismo que nunca cheguei a compreender: "Deus escreve direito por linhas tortas". Parece que tem várias interpretações, entre as quais destaco uma que pretende dar a entender que as pessoas que mais sofrem na vida, sobretudo as crentes e boas (não confundir com quentes e boas), é que conseguem realizar-se ou ter um lugarzinho no Céu e por isso, a história de Noé também pode simbolizar a esperança na sua salvação.
Continuando:
A palavra "velha" representaria, então, a velha aliança entre Deus e o Homem que, afinal, o Criador tem vindo a violar sistematicamente.
Fora do contexto, até tem alguma similitude, respeitando as devidas distâncias, com a "velha aliança" celebrada entre os reinos de Portugal e Inglaterra, conhecida como "Tratado Anglo-Português de 1373", no qual os "bifes" impingiram a Dom João I, Filipa de Lencastre que, além de ser muito alta e muito feia, sofria de bicos de papagaio. Em troca, a gente enviava para os gajos vinho do Porto e pura lã virgem.
Outra explicação para a frase "arco-da-velha", esta de origem duvidosa, teria a ver com o facto de as pessoas antigas, muito antes de Benjamin Franklin ter inventado a electricidade (ressalvo que, em Portugal, esse hábito prolongou-se durante séculos após a invenção desta forma de energia), terem o hábito de salgar os presuntos dentro de arcas com sal e, por conseguinte, em vez de "arco-da-velha", seria "arca da velha" (vulgo salgadeira da minha sogra). Ainda assim, isto não é incontestável. Penso, até, que se pode contrariar à vontade porque o que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira e ele há coisas, mesmo, do arco-da-velha!
Já, agora, uma nota final ou uma curiosidade em jeito de nota final: O arco-íris também é conhecido como Arca da Aliança que era um tabernáculo onde os judeus guardavam o vinho. Tabernáculo, estão a ver? Está de caras! Não? Eu também não disse que sabia muito de História Sagrada, n'é?
Prometo que nunca mais publico histórias do arco-da-velha, eu seja ceguinho!
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