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LOUVAÇÃO DA RUA

por João Castro e Brito, em 10.05.24

louvação da rua.jpg

Nesta cidade assustada há uma rua que permanece imune às punições da corrupção e da cobiça. Fica paralela ao Largo do Intendente e à Damasceno Monteiro e tem um nome feiote, cuja origem e história quero ignorar: Rua da Bombarda. Passeando a memória pelos seus velhos prédios, pelo recorte sombrio dos seus pátios interiores, pela taberna do Amador Puime Dominguez, pelos domingos com música de "Jazz-Band", pelo senhor professor Meireles, que estudava ornitologia e tentava cativar a malta para as alegrias da botânica – é como receber respostas a perguntas que não formularia sequer aos meus amigos mais íntimos.
Foi ali que o velho Bastos formou o seu clã, foi dali que, alguns de nós partimos, um dia, para viagens com e sem regresso.
Os Bastos nunca foram gente dada ao sentimento lacrimejante do passado: têm cumprido a ordem natural da vida, amado com alegria, lutado por uma porção de coisas e morrido com honra. Há um porém em relação à rua. A avó Maria deixou de lá ir quando soube que haviam deitado abaixo a fábrica de têxteis. A minha irmã Armelinda quis ver a rua horas antes de morrer. O velhote, uma vez interpelado sobre a sua nacionalidade, respondeu: "Sou da Rua da Bombarda". Não é um processo subliminar de se manifestar uma raivosa impotência ao avanço dos anos. É um acto de amor.
Na rua havia uma escola. Na escola, professor Meireles. Aprendemos todos alguma coisa com esse homem que amava a ornitologia, a botânica, as crianças – e a rua.
Numa tarde em que a Margarida, a miúda-eleita-de-toda-a-malta, copiava o ditado, pelo livro de leituras, o professor Meireles disse-lhe: "Olha que eu tenho olhos." "E por sinal bem bonitos, senhor professor!" – respondeu-lhe a Margarida.
Todas as ruas têm alma e todos nós temos na alma uma rua.
Quando o professor Meireles morreu, num fim de tarde sereno, as janelas removeram as cortinas, Amador Puime Dominguez cerrou meia porta, não houve música de "Jazz-Band", os pátios interiores ficaram mais sombrios – e fomos todos lá num regresso adulto. Todos. Todos em redor daquele corpo hirto, daquela face serena, daqueles olhos fechados.
Por sinal, bem bonitos, senhor professor...
 
Por Baptista Bastos
Lisboa Contada Pelos Dedos
Crónicas/2001
 
 
Quem não tem na alma uma rua?
Esta, de que vos conto, é a minha. Lembro-me dela como se fosse hoje. Era o meu território e o de um bando de putos de botas cardadas e calções remendados, do qual fazia orgulhosamente parte.
Lembro-me da Leta "ranhosa" que morava uns quatro quintais antes do meu. Chamávamos-lhe assim porque andava sempre com uma gota de ranho a querer pingar-lhe do nariz.
Lembro-me das nespereiras da dona Alice, a vizinha do lado, e de ela me alçar para o seu quintal quando a minha mãe me queria castigar por lhe ir às nêsperas; dos pessegueiros da Célia, dois quintais antes do meu, cheios de pêssegos amarelos; até dos ais cruciantes do senhor Eduardo, em luta inglória contra algum mal de que padecia; e do fogo na fábrica de cortiça, ali tão perto, que passei uma noite sem pregar olho; ainda dos gemidos das sirenes dos barcos em dias de nevoeiro; também do toque vibrante do relógio de parede da vizinha de cima, a dona Lídia, a soar de hora em hora; mesmo das brincadeiras, "patifarias" e outras peripécias próprias de crianças: brincar aos "cobóis" com pistolas de fulminantes; fazer fisgas para ir aos pássaros (confesso, com alívio, que nunca matei nenhum); ir à "chinchada" aos quintais da vizinhança; apanhar borboletas (pousadas) com o polegar e o indicador; meter lagartas das couves no bolso do avental da minha avó Maria; "brincar" com bombinhas, garrafinhas de mau cheiro, rabichas e triquetraques no carnaval e sei lá que mais.
Também me lembro de ver o Cristo Rei, a partir da minha rua. Penso que há muito tempo que já não se vê porque a minha rua ficou cercada por prédios altos.
Passadas décadas, lembrei-me de visitar a minha rua, numa espécie de romagem de saudade, e pareceu-me mais pequena; tudo me pareceu mais pequeno.
A propósito do Cristo Rei, lembro-me de a minha tia Rosa me ter levado a assistir à sua inauguração. Também, só muito mais tarde é que soube que o monumento havia sido "abençoado" pelo, então, Cardeal Cerejeira. Dizia-se que ele e o Salazar eram unha com carne...
Lembro-me de a minha mãe me ter comprado um brinquedo de lata, de eu o ter aberto pra ver se tinha alguma coisa dentro, e de ter desatado a chorar porque era oco. Também me lembro de, às vezes, o meu pai me trazer um chocolate, daqueles que saíam nas caixas de furinhos da Regina (passe a publicidade), e o "velho" sorrir para o ar de felicidade de um miúdo.
Lembro-me de ter sido operado à garganta e ao nariz, num hospital que já não existe e, após a operação, ter vindo para casa ao colo do meu pai.
Lembro-me de ficar em casa, sozinho, a tomar conta da minha mana caçula, enquanto a minha mãe ia trabalhar.
Lembro-me, ainda, quando ficava sozinho, de fugir de casa, quando chovia ou trovejava, por ter medo da chuva e da trovoada; da minha mana mais velha me pegar ao colo, sentada numa cadeira muito frágil e de termos caído; de ir com a Fernanda para a escola, cada um para a sua. Naquele tempo os meninos não se podiam misturar com as meninas.
Lembro-me de me baldar à missa aos domingos para ir ver filmes do Joselito e da Marisol, à borla, na Academia Almadense; de comer hóstias (não consagradas), depois da catequese; de, aos seis anos, ficar tonto pela primeira vez, com um gole de licor de ginja; de me encantar com os "robertos" e com o circo; de me apaixonar pela Célia e pela Fernanda; de querer ir para o seminário; de amar a minha mãe como se ama uma parte de nós, da qual não nos podemos separar sob risco de morte; de rolar pela minha rua abaixo montado no carrinho de rodas de esferas do meu amigo Fernando; de ferir muitas vezes os joelhos ou romper os calções com travagens mal calculadas; de uma vez ou outra abrir a cabeça, quando "renávamos" à pedrada com uns gajos que não eram da nossa rua, e sujeitar-me às inevitáveis chineladas da minha mãe – exasperada – quando chegava a casa feito um Cristo com uma coroa de espinhos.
Lembro-me, inclusive, do campo de trigo ali tão perto e do vermelho vivo das papoilas. O mesmo campo onde, todos os anos, depois da ceifa, se fazia a feira popular de Almada, salvo erro por altura dos santos populares. Dava-me um gozo do caraças ver os homens a montar os carrosséis, as barracas de comes e bebes e outras diversões. No meio desta excitação, provocada por este e outros eventos festivos onde houvesse foguetório, tinha um medo declarado do seu barulho e olhava para o céu com receio de que alguma cana me caísse em cima.
Lembro-me de algumas alturas em que o meu pai chegava a casa já noite tardia, com um grão na asa, e mesmo que eu já estivesse a dormir, tinha de me fazer um mimo antes de recolher a vale de lençóis.
Lembro-me de a minha mãe ter-me levado consigo à praça, num dia em que houve um acontecimento dramático: o dia do atentado contra o presidente Kennedy. Lembro-me de, nesse mesmo dia, um homem ter passado por nós, lançando um piropo à minha mãe.
Também me lembro dela me dar banho no quintal, no tempo quente, dentro do tanque de lavar a roupa; de um sapo de estimação, chamado Jacob, que frequentava o nosso quintal; de colher tomates maduros do tomateiro e comê-los assim, sem mais aquela; de comer figos verdes e ficar com os lábios rebentados; da força das mãos secas e calejadas da minha avó Maria; da sua voz forte e grossa e simultaneamente apaziguadora quando, cantando, me tentava adormecer...
São tantos os fragmentos de memória que me percorrem o pensamento que me é impossível descrevê-los por ordem cronológica. As lembranças avançam e recuam, a um ritmo caótico.
E aqui as deixo registadas (para quem gostar de as ler) porque não sei se consigo mantê-las nos próximos tempos. Algumas são marcantes e outras triviais, mas todas têm a mesma importância que me merecem os saudosos episódios da minha infância.
Mais haveria para contar, mas não me quero alongar. O pano de fundo foi sempre a minha querida rua. Ainda me lembro do seu primeiro nome: Rua Fernão Mendes Pinto. Até o topónimo, algum vereador idiota, se lembrou de trocar por outro, um dia, em plena democracia...
Contudo, e a propósito de mais uma deliciosa crónica de "BB", e mesmo tendo "partido um dia para uma viagem sem regresso", também tenho a minha rua na alma. E vai permanecer até morrer. Depois logo se vê...
 
João Brito
 

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ONDE É QUE VOCÊ ESTAVA, NO 25 DE ABRIL?

por João Castro e Brito, em 25.04.22

salgueiro maia.jpg

A propósito desta pergunta que se converteu num ícone da imagem do jornalista e escritor Baptista Bastos (1934 - 2017) e recorrente em conversas e leituras de carácter biográfico, apraz-me tornar ao assunto do 25 de Abril. Um tema melindroso para muita gente, certamente, mas sem esse acontecimento memorável e relevante para a história da nossa – ainda jovem – democracia, não seríamos a nação livre que somos hoje, malgrado os defeitos que lhe são atribuídos (à jovem democracia).
Não há sociedades perfeitas, se bem que hajam umas mais perfeitas do que outras, por muito incoerente que esta afirmação possa parecer...
Não obstante persistirem alguns ressentimentos (alguns será favor...), julgo que é saudável trazer à memória factos que nos enchem de orgulho, embora reconheça – insisto – que não é uma ideia consensual. Isto porque ainda há gente que pensa que no tempo da "outra senhora" é que era porreiro; o respeitinho era muito bonito e andava tudo a toque de caixa.
Apesar de ser um reflexo da nossa falta de cultura democrática (e não só), não é literalmente condenável: os políticos que têm tomado conta dos nossos destinos há quase meio século, têm contribuído de alguma forma para esse juízo. Isto, segundo o meu ponto de vista que até admito que seja um bocadinho desconforme.
Quase cinco décadas após o 25 de Abril, ainda há muitas feridas por sarar, nomeadamente as relacionadas com o processo de descolonização que, como é consabido, foi muito precipitado. Se calhar não podia ter sido diferente, dadas as circunstâncias históricas nimiamente explicadas. Contudo, isso teve um preço bastante elevado que foi o retorno apressado de muita gente "com uma mão à frente e outra atrás"...
Todavia, correndo o risco de estar errado e, por conseguinte, a minha opinião ser muito discutível, penso que foi um efeito inevitável da "revolução"...
Porém, como disse, não podemos, simplesmente, varrer esta data da nossa memória, como pretendem algumas alas mais "conservadoras" cá do burgo...
Logo, apeteceu-me contribuir, uma vez mais, para que este dia permaneça perene na lembrança daqueles e daquelas que valorizam o preço da liberdade. Assim, resolvi rescrever um artigo, com alguns anos, acerca dessa fantástica e exclusiva data para as gerações que a testemunharam, particularmente a minha que, na altura da "Revolução de Abril", combatia nos territórios ultramarinos...
Lembro-me perfeitamente – como se fosse hoje – de ter experimentado um sentimento novo: uma mistura de expectativa e alguma apreensão. Expectativa porque, acabado de regressar (provisoriamente?) de uma das mais ferozes frentes de guerra, senão a mais feroz, e tendo consciência de que não estava livre de volver ao mesmo lugar ou a outros, assim que começaram a surgir os primeiros relatos radiofónicos de um movimento militar, uma das minhas primeiras reacções, pelo menos a imediata, foi a de pensar que não ia voltar ao "ultramar". É uma reflexão que guardo com muita intensidade porque, para um puto com vinte anos, uma comissão militar em África não era a mesma coisa que participar num safári. Mas só cheguei a essa conclusão pouco depois de lá estar, pois, antes de abalar, julgava que ia à aventura para aquela África que via nos filmes em que o Johnny Weissmuller fazia de Tarzan.
Apreensão porque não sabia qual era o objectivo desse movimento – embora tivesse uma noção vaga de que era preciso dar outro rumo a isto – e não porque emergisse subitamente da minha razão algum tipo de consciência política ao ponto de julgar o regime que estavam a tentar derrubar, como o mau da fita. Longe de mim estar tão bem esclarecido como aqueles e aquelas que pagaram bem caro o seu combate à ditadura que dominava em Portugal.
Além dessa expectativa e alguma inquietação, tinha o conhecimento exacto de que o teatro de guerra donde acabara de regressar, a Guiné, estava de feição para o "inimigo" e, como tal, se o conflito prosseguisse, o desfecho ia ser ainda mais trágico para o nosso lado do que tinha vindo a ser até ali...
Lembro-me perfeitamente – como se fosse hoje – que antes de frequentar um curso militar na base aérea da Ota, para o qual havia sido convocado, fui colocado noutra base, a do Montijo, integrado em manobras militares no âmbito da OTAN.
No intervalo de um turno de trabalho nocturno, aproveitado para esticar o corpo em cima de uma tarimba, entre o dormitar e algum estado de sobreaviso – próprio de quem em tal estado (mesmo em simulacro) não deve adormecer profundamente – , senti um alvoroço vindo da área operacional que não distava muito do local onde eu descansava: um "Hammarlund" sintonizado no Rádio Clube Português, o emissor que a malta, por opção ou mero acaso, tinha no ar, difundia notícias contraditórias sobre um golpe militar que estava a decorrer em Lisboa. Não me apercebi imediatamente do que se tratava, até que o meu camarada Lopes me deu um safanão nas pernas para me instar a prestar mais atenção ao que estava a acontecer. "Será grave?" - pensei. Depois, com o raciocínio mais lesto e reforçado com um café quente e um cigarro, despertei da insensibilidade aos acontecimentos...
À medida que o tempo decorria e o dia ia clareando, a rádio continuava a transmitir marchas militares e música de intervenção, intercaladas com relatos exaustivos de última hora. Parecia que tinha caído o Carmo e a Trindade e, com efeito, o Carmo acabara de "cair"...
Passadas as indefinições iniciais, nos dias subsequentes, a situação parecia estar controlada pelas forças militares revoltosas. Tal suposição era baseada exclusivamente no que escutávamos e víamos na rádio e televisão porque ficámos retidos na unidade, não sei precisar durante quanto tempo. Certo é que ninguém entrava nem saía, por ordem do comando, talvez ainda indeciso em relação ao lado que pretendia apoiar. Penso, embora sem certeza, que essa ordem era extensiva à malta dos países que participavam no exercício e estava estacionada na base aérea.
Passado que foi o "período de ponderação" do comando da unidade, durante o qual as manobras militares foram mandadas às urtigas, tivemos ordem de soltura. Finalmente, chegara também para nós o dia tão esperado.
Lembro-me perfeitamente – como se fosse hoje – que atravessar o Tejo na lancha militar que me devolveu a Lisboa, foi algo fantasticamente incomum, relativamente à monotonia de outras travessias.
Talvez, sugestionado pelo momento particular, ao desembarcar, senti que pairava sobre as colinas da cidade um efeito de luz diferente, magnífico até, a que ao cheiro a maresia se juntavam outros indescritíveis elementos aromáticos. Penso nessa sensação agradável com alguma nostalgia, mas não muita. Os anos ajudaram-me a obter algum calejo emocional e a olhar para trás com uma visão menos romântica do maior acontecimento da nossa História, no meu tempo.
Mas – continuando – onde notei maior diferença foi nos semblantes e atitudes das pessoas com as quais me cruzei; acima de tudo, nos seus sorrisos abertos. Inclusive – algumas – pagavam com beijos, abraços e cravos a generosidade dos homens fardados que lhes tinham acabado de restituir a liberdade e a confiança. No fundo, também me senti participante nessa maravilhosa manifestação de exultação popular, mesmo tendo a noção de não ter sido actor e tampouco figurante no memorável acto libertador. Foi como se fossem os primeiros dias de todas as esperanças, com a particularidade sui generis e, quiçá, única no mundo, de os militares estarem ao lado de um povo.
A esta distância temporal, continuo convicto de que valeu a pena um punhado de capitães ter lutado (por obra do destino ou acaso e sem muita efusão de sangue), para mudar o nosso país.
Muito ficou por fazer, evidentemente, e ficamos com alguma mágoa ao constatar que, entre outras situações de injustiça – para usar um termo suave – , questões como a sustentabilidade e equidade sociais ainda são motivo para debates políticos muito acirrados entre forças partidárias contrárias, passados quase cinquenta anos de "democracia"...
Mas pronto, somos livres graças a Salgueiro Maia e a outros heróicos Capitães de Abril. O livre-arbítrio é uma prerrogativa que nos cabe desde então. Valha-nos isso...
 

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RITOS E CELEBRAÇÕES DO CAMINHAR

por João Castro e Brito, em 07.04.22

é urgente o amor1.jpeg

Ando pelas ruas de Lisboa, é uma quente tarde de sexta-feira, as ruas estão quase despovoadas e as raras pessoas que caminham são pessoas possuídas por uma tristeza amável.
Dos velhos muito velhos, apenas dois velhos muito velhos estão sentados num banco de jardim. Não conversam: trespassam-se com o olhar, estão a ver para lá de tudo, para aquém de tudo.
Um cego avança pelo fio do passeio, junto do qual estão estacionados dezenas de automóveis, enquanto avança com todos os outros sentidos despertos. Surge um indivíduo aos gritos:
- Ó sua besta, então não vê o que anda a fazer?
O cego pára, cativo de uma angústia tão imensa como um desprezo ou como um ódio. Ergue a bengala e agita-a:
- Onde é que você está, seu malandro, para lhe partir a cabeça?
Estão nisto: no domínio de uma espécie particular de indignação - a dos agredidos, que, afinal, são ambos. Ando e penso: é como se estivesse perto de mortos, sem manifestar o mínimo interesse por eles.
Outrora, a cidade era mais confortável e menos hostil. As pessoas, mesmo sem se conhecer, cumprimentavam-se. Não era a celebração da cortesia, nada disso: era, sim, um aceno, um sinal de presença. Agora, as pessoas parecem assustados retirantes de todos os sítios, porque se não sentem bem em nenhum deles. Há nas pessoas uma forma confusa de não estar em parte alguma e o desejo obscuro de estar em todas as partes. Cegos. São cegos sem bengala mas igualmente desencontrados. Os tempos tornaram as pessoas assim. As maneiras de comunidade, que ultrapassavam, pela fertilidade e pela constância, toda a nossa capacidade de imaginação, foram inclementemente derruídas. Vê-se: há outra gente que não é nova de rejeitar, anular e excluir os outros. O sentido da consagração da vida foi substituído pela exaltação do êxito, da pressa, da aspereza. Há predicados e entendimentos que foram banidos das relações; por exemplo: o da solicitude. E eu gosto de solicitude, uma discreta expressão da malícia, do humor e, até, da dignidade. Não há teoria que explique esse banimento.
Vejam só isto: quantos carrinhos de bebé, empurrados pelos pais jovens, se vêem hoje nas cidades?
Eu sei, senhores, ah!, se sei!, quanto foi penosa a batalha que nos conduziu a um patamar de liberdade. Porém, não devíamos, penso que não devíamos, ter deixado que muito do que é essencial se perdesse - até uma fatia de afecto, até uma pequena ração de amor.
Ando pelas ruas de Lisboa, é uma quente tarde de sexta-feira, as ruas estão quase despovoadas e as raras pessoas que caminham são pessoas possuídas por uma tristeza amável. O casal de velhos olhou-se e sorriu com doçura. Ela pegou nas mãos dele e afagou-as lentamente, sem deixar de o olhar, sem deixar de sorrir.
Lá no fundo, impercetível quase, um ponto se move, alarga-se aos poucos, contorna-se-lhe agora o vulto, o vulto é um homem grisalho, um homem de muito mundo, de passo largo e pesado. Olho-o e sou eu. Olho-me e sou a imagem devolvida de uma ostensiva paixão. E, de repente, simplificado e livre, percebo que sou o sujeito de uma oferta e de uma procura. A oferta do amor e a procura de felicidade.
Desesperadamente, como o cego ou como os velhos. Desesperadamente, como todos nós.
Do livro: Lisboa Contada pelos Dedos - Crónicas de Baptista Bastos (Abril de 2001).

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