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Criei este blogue com a ideia de o rechear com estórias rutilantes, ainda que às vezes embaciadas. Penso que são escritas sagazes e transparentes, embora com reservas e alguma indecência à mistura. No entanto, honestas.
Heitor era doido por sopa de letrinhas.
Desde menino que tinha esta obsessão gastronómica que herdara de seu tio Arlindo, conhecido industrial de alimentos e um indefectível da sopinha de massa.
Muito antes de conhecer o alfabeto fonético, paradoxalmente, já arranhava muito bem o grego, interessando-se, em particular, pelo chamado período clássico, onde Heródoto de Halicarnasso, por exemplo, lhe despertava um apetite voraz por rosbife.
Perante um cenário tão promitente é fácil conjecturar ou até especular - passe a redundância - que se deve ter tornado, surpreendentemente ou, quiçá, sei lá, num potencial literato emergente. A tal ponto que é consabido que dominava precocemente conhecimentos avançados de estudos literários à distância.
Todavia, sempre recusou sopa de tomate e manjericão; abominou a de abóbora e declarou guerra às sopas de pevides e estrelinhas, por muito inverosímil que nos pareça.
Na fase da adolescência, aquele período muito parvo e inconsciente, cheio de sangue na guelra e espinha no dorso, quando os fedelhos se escamam por tudo e por nada, ele era diferente; comia sempre num enorme prato de sopa "Cerâmica de Valadares" - passe a publicidade - que ele, nestas coisas, era muito esquisito, benzesse-o Deus Nosso Senhor.
Era nas bordas do prato que ensaiava prosa cacográfica com as letrinhas da sopa. Também tinha aquela intuição, só acessível aos seres eleitos, de que a leitura e a escrita criativa prejudicavam seriamente a ignorância e, por isso, insistia na sua ordenação perfeita de modo a formar, pelo menos, frases lacónicas; e a mais não era obrigado, pois já fazia muito para além da sua aptidão inata.
Heitor faleceu há dias, com tanto ainda para dar, mas a vida é mesmo assim: feita de imponderáveis, por muito que nos tentem convencer de que o destino marca a hora...
O relatório da autópsia não podia ter sido, bem a propósito, mais conciso: utilização excessiva de palavras parónimas com acento tónico na primeira sílaba como, por exemplo, átono e átomo ou na segunda como apóstrofe e apóstrofo.
Quanto ao Acácio, há muito que emudeceu. Saturado de contar mentiras e semear mexericos a torto e a direito, a boca resolveu pregar-lhe uma partida, fugindo-lhe para a verdade. Tantas vezes vai o cântaro à fonte, é o que é! Ainda esboçou a tentativa de a perseguir, mas debalde (não confundir com de balde); era impossível! Desta vez a boca correu mais célere do que o boato.
Escusado será dizer que, para recuperar a fala, Acácio aguarda que alguém, por caridade, lhe mande a boca.
A Arlete, ao passar por uma montra da Rua Garrett (leia-se o trissílabo garréte), viu exposta uma linda jaqueta de pele com a qual sempre sonhara. Olhou-a através da vitrina, de todos os ângulos que as suas trinta dioptrias permitiam, e ficou fascinada.
Em casa, comentou isso com o esposo:
«Hoje, estive vai-não-vai para comprar uma jaqueta de pele, daquelas que tu nem calculas! Só não a comprei porque me ia custar os óculos da cara!»
«Graças a Deus que tiveste o bom senso de não os teres deixado lá, filha! Era muito desagradável voltares a usar olhos!»
Já o Sargento Ramires, estava de folga a curtir música rock. Um pouquinho juvenil, um tudo-nada rebelde, mas, mesmo assim, um nadinha ruidosa. Contudo, nada marcial, coisíssima alguma uma brigada, tampouco regimento, batalhão ou pelotão. Assim, o Sargento Ramires tomou uma decisão inalienável, indiscutível e exclusiva: pediu a carta patente de oficial subalterno depois de passar à reserva territorial.
Heitor, Acácio, Arlete e Ramires, quatro casos pessoais, quatro exemplos de desprendimento; quatro lições de altruísmo, dedicação e abnegação. Sobretudo, quatro estórias paradigmáticas.
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