– Querida, onde estás?...Uhu!... Não há nada que se coma nesta casa, amor? Estou esganado com fome!
Dos lados da casa de banho, veio a resposta:
– Já desligaste o vatel? Pois, não devias tê-lo feito! Agora não te posso atender; estou a fazer um "system update"!
Estrelou uns ovos de dodô(*) e, enquanto os devorava com voraz apetite, contou as novidades do dia:
– Queres saber uma que ouvi hoje no serviço? Então, não é que o Tó Zé foi apanhar a mulher na cama com o andróide jardineiro, pá, já viste?! E sabes que mais? A coisa deu divórcio litigioso, o gajo aproveitou o pretexto e amancebou-se com o estupor do bonifrate, já viste?! É preciso ter lata que é coisa que não lhe falta, aliás! Há cada uma que a gente até fica parva!
Estranhando o silêncio da mulher perante a novidade tão surpreendente que lhe acabara de anunciar, dirigiu-se à casa de banho, pé ante pé, e descobriu-a na posição de quatro com o andróide despenseiro e, simultaneamente, a fazer um felatio ao andróide da limpeza doméstica.
Perante o lamentável cenário de libertinagem pura e dura com que se deparou, não esteve com meias-medidas: pregou um par de bofetões à mulher por andar a estragar os outros robôs com mimos e deu-lhes uma grande descasca por estarem a fazer sexo dentro do horário normal de expediente. E ainda os ameaçou com desligamento colectivo, sem justa causa, por via das tosses.
Passado o infeliz episódio, resolvido a contento de todas as partes envolvidas e após o jantar, entretiveram-se a fazer zaping em canais de memórias televisivas do século XXI. Entre os programas memoráveis dos canais generalistas de outrora, o tempo ia passando enquanto esperavam que o andróide lava-loiça acabasse de arrumar a cozinha.
Após as tarefas domésticas cumpridas, desactivaram a máquina e foram-se deitar; o dia tinha sido bestialmente fatigante.
– Queres ter relações sexuais? – perguntou ela, alheia à resposta.
– Estou com dores de cabeça... – esquivou-se, tendo a noção exacta do tom desapaixonado da pergunta dela.
– Deixa lá, delegamos nas nossas unidades sexuais autónomas» – disse ela.
Trataram de colocar uns dispositivos cheios de luzinhas coloridas, a piscar e a silvar intermitentemente, cada um em cima da respectiva mesa de cabeceira, e caíram instantaneamente num sono profundo, quase de morte. Os módulos deram, então, início a um ciclo de coito tântrico automático (ou não fossem autómatos) que se iria prolongar noite adentro.
Módulo xy:
– Pronto para inicializar acto, coordenadas XPD (xray, paso-doble) - 33° 69' 96'', diga se já posso metê-lo, over.
Módulo xx:
– Over me, é claro; para já, apénis tenho contacto visual. Pode dar início à aproximação copular...ups, "just a minute", necessita lubrificar um pouco! (A memorizar expressões e interjeições designativas programadas para hoje:
– isso, aí, aí tá bom, quero-te todinho só pra mim, tens um corpinho de sonho, mete-o todo, ai, ui"...brup, slurp, truca-truca, chloc, over).
Módulo xy:
– Cuidado, não perca o controlo nem declame poesia erótica da Natália Correia e muito menos do Bocage ou do António Botto sob risco de sobreaquecimento das células de iões de hidrogénio! Comutar para a posição de gozo total ATL (argenta, tango-louco) 433...ah, confirme se tomou pílula, over.
Módulo xx:
– Afirmativo, pílula processada. Vou comutar libido para pilota automática para poupar a sua pilha (pila em madeirense). Diga se tomou comprimido azul, over.
Módulo xy:
– Ok, acabei de processar sete. Já sinto algo. Todavia, mantenho-me em standby a aguardar efeito mais acentuado, over.
Horas mais tarde:
Módulo xx (a escaldar e a deitar fumo):
– Gozei que nem uma máquina perdida; noite inesquecível; estou de rastos; tenho de desligar; over and over.
Na manhã seguinte:
– Dormi como um andróide, querida! – exclamou, na casa de banho, sentado na sanita, a lubrificar as juntas.
– Ontem não te contei o que se passou na mercearia do senhor Narciso? – disse ela – Vê lá que a do 222º esquerdo pegou-se com uma venusiana do 335º direito! Tudo por causa da outra deixar sempre a roupa a pingar no estendal e molhar-lhe a roupa toda! O bom e o bonito, foi quando a venusiana a acusou de ter feito sete abortos espontâneos de uma relação extra-conjugal com um terminal de computador obsoleto. Como se não bastasse, ainda gritou, para quem a quisesse ouvir, que a do 222º tinha ido para a cama com um sujeito verde com antenas cromadas, vê tu! A do 222º não foi de modas e chamou-lhe venusiana(**), imagina! Zangam-se as comadres e descobrem-se as verdades, é uma vergonha!... Ai, estas malditas hemorróidas dão cabo de mim!» – desabafou ela a fazer um semicúpio, no bidé, com óleo mineral.
Ele, com o seu ar mais paternalista da galáxia, já imerso no óleo da banheira, enquanto deixava outro robô lubrificar-lhe as partes, perguntou:
– Foi bom, o sexo, ontem? – ela anuiu com indiferença.
Ele desconfia, há algum tempo, que ela tem um caso traumático com um andróide ucraniano.
Não tardaram a separar-se. Ele seguiu a caminho de mais um dia de labor numa fábrica de chipes e ela caminhou até uma cinemateca próxima de casa, onde desempenha trabalho de recuperação e catalogação de filmes indianos "hard-core" do século XX. Uma actividade cultural assim, a modos muito "kitsch". É um trabalho visual árduo e, naturalmente, cansativo, não obstante aqueles olhos grandes e doces que Saturno, um dia, lhe há-de comer.
(*) Ave pré-histórica das Ilhas Maurício.
(**) Seres hermafroditas com três pernas, quatro mamas, duas vaginas e um pénis assoberbante atrás das costas; e detestam que lhes chamem venusianas. Manias!