
23H45 do dia 03 de Setembro de 2008:
Entro no serviço de urgência do hospital com um homem visivelmente debilitado. Sofre de náuseas, vertigens e uma pressão inusitada na cabeça e nos ouvidos.
Peço uma cadeira de rodas para o sentar, ao que prontamente dois seguranças correspondem. Sinto-me impotente para lhe aliviar o sofrimento.
Não demorou muito a ser atendido na triagem: de que é que se queixa, as drogas que toma, desde quando é que se sente assim, medição da tensão arterial, enfim, os procedimentos habituais em iguais circunstâncias, presumo.
Não é a primeira vez que corro com ele para as urgências e penso que não há-de ser a última, se bem que, quando para lá caminho, fique com a impressão de que já de lá não sai. A idade não perdoa estas "recaídas"...
«É familiar?»
«Sim, sou filho!»...
Acompanho-o, colam-me a etiqueta de acompanhante. Vai para a observação...
Um corredor, várias salas, macas com doentes, macas vazias, cadeiras de rodas e o cheiro característico a ar condicionado misturado com formol. Qualquer odor, bom ou mau, comunica-nos sempre algo. Os odores enviam mensagens óbvias em diversas circunstâncias; noutras requerem descodificação. Os cheiros de um hospital, causam-me invariavelmente desconforto. Talvez, resultado de uma experiência menos boa, em ambiente hospitalar, quando era criança. Curiosamente, ficaram-me fragmentos, nada agradáveis, dum episódio da minha infância...
Um sujeito, provavelmente a ressacar da sua toxicodependência, lança impropérios e pede desesperadamente a alguém que lhe dê uma "injecção". Algo que eu reclamaria, agora, a todos os santinhos, com a intranquilidade própria de quem quer a todo o transe alguma coisa para aliviar o tormento do homem a seu lado.
Perpassam-me ideias confusas, algumas absurdas. São as pessoas; os olhares; o estado de sofrimento e ansiedade de meu pai; os gemidos aqui e ali; o vai e vem dos médicos e enfermeiros; a mulher sentada numa cadeira de rodas que me pergunta se sou filho daquele senhor e que me diz estar ali, vai para muitas horas; que é de longe e está sozinha; que quer ir para casa e algo mais que balbuceia...
Uma auxiliar de enfermagem está quase a ficar passada com a cena do homenzinho presumivelmente ressacado; lê-se no seu olhar reprovador. Vocifera qualquer coisa entre dentes a que não presto muita atenção, tão imerso que estou na situação do meu pai.
Um homem andrajoso, com farta e suja cabeleira, passeia-se tranquilamente entre o corredor e as salas de observação. Pelo aspecto, estou certo de que não pertence aos quadros do hospital. Nem sei que raio de estatuto possa ser o seu, para deambular por ali. Entretém-se a devorar iogurtes, supostamente postos à disposição dos doentes e funcionários de serviço às urgências durante a noite. O tempo passa...
2H45 do dia 4 de Setembro de 2008:
Meu pai continua a desesperar na maldita cadeira de rodas. Não sente os pés, os braços pesam-lhe, ameaça bolçar o vazio que lhe resta no estômago, a cabeça rebenta-lhe, geme, adormece e volta a gemer. As queixas recorrentes. Uma médica, sorridente, olha-me nos olhos, pergunta-me há quanto tempo ali estamos, mira-me o autocolante, está lá indicada a hora de acesso às urgências:
«Estamos aqui há 3 horas, doutora!» - e ela sorridente; um sorriso cansado, aliás. Por isso não suficiente para me tranquilizar.
«Só 3 horas?!» - Olha para outro doente, o mesmo gesto, o mesmo sorriso, manda-o entrar, está lá há mais tempo para ser observado.
Uma acompanhante de outro doente, admirada com o facto de eu ter referido que estava ali há 3 horas, ironiza baixinho:
«E nós estamos aqui há 10!»
Pois é, esta história de clínicos tarefeiros, pagos à hora, dá maus resultados: é preciso que as horas de turno se esgotem, sem grandes sobressaltos - João Semana é um mito...
O homem andrajoso passa ao nosso lado e deixa um rasto fétido. Tira mais dois iogurtes, enfia um num bolso das calças e o outro espreme-o alarvemente para dentro da goela. Entra numa sala, conversa com um doutor e sai por outra.
O eventual toxicodependente vomita gritos intermitentes de agonia, agride verbalmente todos a torto e a direito e passeia-se numa cadeira de rodas, impedindo a circulação das macas com doentes. A tal auxiliar de enfermagem afasta-o do caminho, atira-lhe ameaças vãs e as horas continuam a passar...
3h30:
O meu pai é chamado:
«De que se queixa?»
«Sofre disto, daquilo e daqueloutro»
Análises ao sangue, ECG, RX ao tórax e não sei que mais. Outra espera interminável. Após o ECG:
«Sr fulano então, sente-se melhor?»
«Qual quê, são os noventa anos, sabe?... Que rica maneira de festejar a minha data de aniversário!»
«Faz 90 anos hoje?!...Ah, nem parece! Parabéns, senhor!»
«Obrigado, mas preferia não padecer desta aflição!»...
Dificilmente, consigo permanecer lúcido a esta hora da noite...
4H00:
Vou lá fora ao guiché das urgências, peço por obséquio para me trocarem uma nota de 5 euros. Preciso de tomar um café ou dois. A maquineta, ali, à mão de semear, um café que me restitua a espertina, me reponha alguma energia. Indiferente, a funcionária responde-me que não tem trocado. Uma miragem, o meu café; que raio de solidariedade!...
Regresso para junto do meu pai, mais uma espera infinita. Dormita e acorda com a mesma pergunta ao longo destas horas:
«Quando é que sou visto pelo médico?»
«Não tarda, pai, não tarda...»
RX ao tórax...mais uma espera. Um fulano esvai-se em sangue, supostamente do baixo ventre. Levanta-se do seu lugar e vai aos lavabos. Na cadeira um jornal tingido de vermelho, empapado. Impróprio para mentes fracas. Não para a minha, que jaz meio entorpecida a estas horas...
4H30, por aí:
O resultado dos exames tarda. Aguardamos no corredor...Entre o dormitar e o sobressalto, o meu pai solta:
«Diz-lhes que o mal está dentro da minha cabeça; dos meus ouvidos! De nada me servem esses exames! Sinto-me muito mal, mesmo, sinto a cabeça rebentar, o meu corpo pesa que nem chumbo!»
«Acalme-se, pai, vamos lá!»
Piorou! A ansiedade parece ter atingido o ponto de ruptura; digo a um enfermeiro que o meu pai não está nada bem, o enfermeiro diz à médica que o meu pai está com mau aspecto, a doutora ordena que o deitem numa maca: soro, fios ligados ao peito e algo injectável para o acalmar... Novo ECG para confrontar medições, a médica suspeita de enfarte, suspeita que não se confirma, após nova medição...
5H30, mais coisa menos coisa:
Meu pai dormita e acorda, diz-me para lhe pôr a cabeceira da maca mais elevada. Está mais sereno, com melhor cor. A médica está a acabar o turno de serviço e passa a bola a outro colega. Diz-me:
«O seu pai vai melhorar. Ele tem muito miminho não tem?»
Anuo, com alguma dificuldade em aceitar a evidência. O meu pai fica muito nervoso quando tudo lhe corre mal. Pensa que vai morrer. É o seu temperamento, a sua maldita idiossincrasia, face à mais ténue contrariedade.
O médico substituto lê o resultado dos exames e diz-me que está tudo bem. Receita uns comprimidos e deseja as melhoras. Tem a certeza que tudo aquilo não passou de um susto. Aconselha repouso absoluto.
São 7H00:
Saímos do hospital. Passamos pela mulherzinha solitária. Vai apanhar o autocarro.
Do presumível toxicodependente nem rasto.
Está uma manhã de chuva morrinhenta e um pouco fria. Saímos daquele purgatório, esgotados por razões diferentes.
Aconteceu no serviço de urgência do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca