Nesta cidade assustada há uma rua que permanece imune às punições da corrupção e da cobiça. Fica paralela ao Largo do Intendente e à Damasceno Monteiro e tem um nome feiote, cuja origem e história quero ignorar: Rua da Bombarda. Passeando a memória pelos seus velhos prédios, pelo recorte sombrio dos seus pátios interiores, pela taberna do Amador Puime Dominguez, pelos domingos com música de "Jazz-Band", pelo senhor professor Meireles, que estudava ornitologia e tentava cativar a malta para as alegrias da botânica – é como receber respostas a perguntas que não formularia sequer aos meus amigos mais íntimos.
Foi ali que o velho Bastos formou o seu clã, foi dali que, alguns de nós partimos, um dia, para viagens com e sem regresso.
Os Bastos nunca foram gente dada ao sentimento lacrimejante do passado: têm cumprido a ordem natural da vida, amado com alegria, lutado por uma porção de coisas e morrido com honra. Há um porém em relação à rua. A avó Maria deixou de lá ir quando soube que haviam deitado abaixo a fábrica de têxteis. A minha irmã Armelinda quis ver a rua horas antes de morrer. O velhote, uma vez interpelado sobre a sua nacionalidade, respondeu: "Sou da Rua da Bombarda". Não é um processo subliminar de se manifestar uma raivosa impotência ao avanço dos anos. É um acto de amor.
Na rua havia uma escola. Na escola, professor Meireles. Aprendemos todos alguma coisa com esse homem que amava a ornitologia, a botânica, as crianças – e a rua.
Numa tarde em que a Margarida, a miúda-eleita-de-toda-a-malta, copiava o ditado, pelo livro de leituras, o professor Meireles disse-lhe: "Olha que eu tenho olhos." "E por sinal bem bonitos, senhor professor!" – respondeu-lhe a Margarida.
Todas as ruas têm alma e todos nós temos na alma uma rua.
Quando o professor Meireles morreu, num fim de tarde sereno, as janelas removeram as cortinas, Amador Puime Dominguez cerrou meia porta, não houve música de "Jazz-Band", os pátios interiores ficaram mais sombrios – e fomos todos lá num regresso adulto. Todos. Todos em redor daquele corpo hirto, daquela face serena, daqueles olhos fechados.
Por sinal, bem bonitos, senhor professor...
Quem não tem na alma uma rua?
Esta, de que vos conto, é a minha. Lembro-me dela como se fosse hoje. Era o meu território e o de um bando de putos de botas cardadas e calções remendados, do qual fazia orgulhosamente parte.
Lembro-me da Leta "ranhosa" que morava uns quatro quintais antes do meu. Chamávamos-lhe assim porque andava sempre com uma gota de ranho a querer pingar-lhe do nariz.
Lembro-me das nespereiras da dona Alice, a vizinha do lado, e de ela me alçar para o seu quintal quando a minha mãe me queria castigar por lhe ir às nêsperas; dos pessegueiros da Célia, dois quintais antes do meu, cheios de pêssegos amarelos; até dos ais cruciantes do senhor Eduardo, em luta inglória contra algum mal de que padecia; e do fogo na fábrica de cortiça, ali tão perto, que passei uma noite sem pregar olho; ainda dos gemidos das sirenes dos barcos em dias de nevoeiro; também do toque vibrante do relógio de parede da vizinha de cima, a dona Lídia, a soar de hora em hora; mesmo das brincadeiras, "patifarias" e outras peripécias próprias de crianças: brincar aos "cobóis" com pistolas de fulminantes; fazer fisgas para ir aos pássaros (confesso, com alívio, que nunca matei nenhum); ir à "chinchada" aos quintais da vizinhança; apanhar borboletas (pousadas) com o polegar e o indicador; meter lagartas das couves no bolso do avental da minha avó Maria; "brincar" com bombinhas, garrafinhas de mau cheiro, rabichas e triquetraques no carnaval e sei lá que mais.
Também me lembro de ver o Cristo Rei, a partir da minha rua. Penso que há muito tempo que já não se vê porque a minha rua ficou cercada por prédios altos.
Passadas décadas, lembrei-me de visitar a minha rua, numa espécie de romagem de saudade, e pareceu-me mais pequena; tudo me pareceu mais pequeno.
A propósito do Cristo Rei, lembro-me de a minha tia Rosa me ter levado a assistir à sua inauguração. Também, só muito mais tarde é que soube que o monumento havia sido "abençoado" pelo, então, Cardeal Cerejeira. Dizia-se que ele e o Salazar eram unha com carne...
Lembro-me de a minha mãe me ter comprado um brinquedo de lata, de eu o ter aberto pra ver se tinha alguma coisa dentro, e de ter desatado a chorar porque era oco. Também me lembro de, às vezes, o meu pai me trazer um chocolate, daqueles que saíam nas caixas de furinhos da Regina (passe a publicidade), e o "velho" sorrir para o ar de felicidade de um miúdo.
Lembro-me de ter sido operado à garganta e ao nariz, num hospital que já não existe e, após a operação, ter vindo para casa ao colo do meu pai.
Lembro-me de ficar em casa, sozinho, a tomar conta da minha mana caçula, enquanto a minha mãe ia trabalhar.
Lembro-me, ainda, quando ficava sozinho, de fugir de casa, quando chovia ou trovejava, por ter medo da chuva e da trovoada; da minha mana mais velha me pegar ao colo, sentada numa cadeira muito frágil e de termos caído; de ir com a Fernanda para a escola, cada um para a sua. Naquele tempo os meninos não se podiam misturar com as meninas.
Lembro-me de me baldar à missa aos domingos para ir ver filmes do Joselito e da Marisol, à borla, na Academia Almadense; de comer hóstias (não consagradas), depois da catequese; de, aos seis anos, ficar tonto pela primeira vez, com um gole de licor de ginja; de me encantar com os "robertos" e com o circo; de me apaixonar pela Célia e pela Fernanda; de querer ir para o seminário; de amar a minha mãe como se ama uma parte de nós, da qual não nos podemos separar sob risco de morte; de rolar pela minha rua abaixo montado no carrinho de rodas de esferas do meu amigo Fernando; de ferir muitas vezes os joelhos ou romper os calções com travagens mal calculadas; de uma vez ou outra abrir a cabeça, quando "renávamos" à pedrada com uns gajos que não eram da nossa rua, e sujeitar-me às inevitáveis chineladas da minha mãe – exasperada – quando chegava a casa feito um Cristo com uma coroa de espinhos.
Lembro-me, inclusive, do campo de trigo ali tão perto e do vermelho vivo das papoilas. O mesmo campo onde, todos os anos, depois da ceifa, se fazia a feira popular de Almada, salvo erro por altura dos santos populares. Dava-me um gozo do caraças ver os homens a montar os carrosséis, as barracas de comes e bebes e outras diversões. No meio desta excitação, provocada por este e outros eventos festivos onde houvesse foguetório, tinha um medo declarado do seu barulho e olhava para o céu com receio de que alguma cana me caísse em cima.
Lembro-me de algumas alturas em que o meu pai chegava a casa já noite tardia, com um grão na asa, e mesmo que eu já estivesse a dormir, tinha de me fazer um mimo antes de recolher a vale de lençóis.
Lembro-me de a minha mãe ter-me levado consigo à praça, num dia em que houve um acontecimento dramático: o dia do atentado contra o presidente Kennedy. Lembro-me de, nesse mesmo dia, um homem ter passado por nós, lançando um piropo à minha mãe.
Também me lembro dela me dar banho no quintal, no tempo quente, dentro do tanque de lavar a roupa; de um sapo de estimação, chamado Jacob, que frequentava o nosso quintal; de colher tomates maduros do tomateiro e comê-los assim, sem mais aquela; de comer figos verdes e ficar com os lábios rebentados; da força das mãos secas e calejadas da minha avó Maria; da sua voz forte e grossa e simultaneamente apaziguadora quando, cantando, me tentava adormecer...
São tantos os fragmentos de memória que me percorrem o pensamento que me é impossível descrevê-los por ordem cronológica. As lembranças avançam e recuam, a um ritmo caótico.
E aqui as deixo registadas (para quem gostar de as ler) porque não sei se consigo mantê-las nos próximos tempos. Algumas são marcantes e outras triviais, mas todas têm a mesma importância que me merecem os saudosos episódios da minha infância.
Mais haveria para contar, mas não me quero alongar. O pano de fundo foi sempre a minha querida rua. Ainda me lembro do seu primeiro nome: Rua Fernão Mendes Pinto. Até o topónimo, algum vereador idiota, se lembrou de trocar por outro, um dia, em plena democracia...
Contudo, e a propósito de mais uma deliciosa crónica de "BB", e mesmo tendo "partido um dia para uma viagem sem regresso", também tenho a minha rua na alma. E vai permanecer até morrer. Depois logo se vê...
João Brito