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Criei este blogue com a ideia de o rechear com estórias rutilantes, ainda que às vezes embaciadas. Penso que são escritas sagazes e transparentes, embora com reservas e alguma indecência à mistura. No entanto, honestas.
Lembro-me, com profunda saudade, como se fossem hoje. Assim, passo a descrevê-los, não sem alguma pontinha de tristeza. Faz parte da minha natureza melancólica q'é que querem?
Vinham todos, inclusive o avô e a avó, muito embora estivessem naquela fase da vida em que alguém tinha de estar sempre atento ao que faziam porque num momento estavam lúcidos e no seguinte desatavam a dizer ou a fazer disparates. É claro que ríamos como riem os netos com os despropósitos dos avós; achávamos piada porque nos revíamos neles.
As datas dos jantares não variavam, eram sempre na altura do Natal ou quando o avô ou a avó faziam anos.
Lembro-me tão bem da azáfama que antecedia um jantar de família. Era a mãezinha a correr de um lado para o outro, feita barata tonta; a avó arrastando o esqueleto pelos cantos da casa, perdendo uma vértebra aqui, um fémur acolá, o avô que deixava cair a prótese dentária e nós a escondê-la «eu já disse ao meu pai que tem de ir a um protésico para encher a placa!» - dizia a mãezinha muito ralada e o paizinho que resmungava sempre entre dentes que aqueles jantares tinham de acabar; que a mãezinha já não tinha saúde para os organizar; que era sempre a mesma a chegar-se à frente; que a família da mãezinha era uma cambada de penduras, et cetera. A mãezinha ripostava sempre: «deixa lá filho, é a única maneira de nos reunirmos!» e outros lugares comuns.
Continuo a lembrar-me como se fosse hoje: Assim que acordávamos, vestíamo-nos à pressa e corríamos até à cozinha para surripiar alguma guloseima já feita, ou rapar os tachos onde a mãezinha batia as massas dos bolos.
Era sempre um cheirinho a doces que nos enchia de encanto e água na boca. Às vezes, não conseguíamos evitar a bengala da avó nas mãos por via das nossas incursões. Não obstante andar presa por arames, ainda conseguia ser destra no seu manejo, embora correndo o risco de se estatelar no chão por falta de apoio momentâneo.
A poucas horas de se juntarem todos à mesa, enquanto a mãezinha apurava um pouco mais o cabrito assado e o bacalhau à lagareiro, evitando, ainda, que a avó polvilhasse o arroz doce com pimenta em pó por distracção, a gente passava o tempo a recordar as figuras mais típicas da família e havia uma que, sendo atípica, era motivo de muitas discussões acaloradas e alguns alvitramentos, nomeadamente, do paizinho: o tio de Peniche. Acabávamos por fazer a pergunta recorrente: quando é que íamos conhecer, finalmente, o tio de Peniche. O paizinho fazia, invariavelmente, a cara do costume: feia como todas as caras feias! Aliás, nem quando estava alegre conseguia pôr uma cara bonita, faça-se-lhe justiça!
Mas, voltando ao tio de Peniche, era uma coisa por demais! Desatava a debitar impropérios, tipo o tio de Peniche era um amigo de Peniche, um safardana, um maltrapilho, um gajo que não tinha onde cair morto e que se entrasse na sua casa pela porta principal, ele - o paizinho - saía pela porta dos fundos e alguns vitupérios que me abstenho de reproduzir por pudor, embora os recorde muito bem como se fossem ditos hoje.
Não percebíamos, na nossa cândida inocência - perdoe-se-me a redundância - , o ou os motivos de tanto rancor pelo tio de Peniche. Pensávamos, até, que o tio estava muito doente, daí o facto de nunca poder vir aos jantares de família. Tampouco percebíamos por que é que o paizinho se zangava tanto, assim que era pronunciado o nome do tio de Peniche.
Em boa verdade, o paizinho andava sempre zangado e isso era coisa que também não entendíamos porque, assim que começava a beber, melhorava a olhos vistos. A avó é que estava sempre a dizer à mãezinha: «Do mal o menos, filha, valham-te os bons vinhos desse desgraçado!».
Não percebíamos o que a avó queria dizer com aquilo, pois o vinho que o paizinho bebia era um "tinto rascante" - segundo as suas palavras - vendido a granel na taberna do senhor Salgado.
Quem salvava sempre a honra do convento era a mãezinha com as suas infinitas paciência e bondade, sempre a deitar água na fervura, ao mesmo tempo que limpava as mãos ao avental; não sem antes provar para ver se estava bom de sal: «Pode ser que ele nos faça uma surpresa este ano!» - exclamava a mãezinha em tom reconciliador, perante o olhar reprovador do paizinho. Afinal vale sempre a pena ter a família reunida em momentos muito especiais. Penso que seria esse o sentimento da mãezinha, do qual se orgulhava muito, apesar do feitio implicante do paizinho.
Recordo tão bem como se fosse hoje. A família ia chegando, um a um, aos pares, aos trios e por aí adiante, e distribuíam-se beijinhos e abraços com cheiro a sovaco, misturado com água de colónia reles. Distribuíam-se também prendinhas: os habituais rebuçados "paladares" que a tia da Cova da Piedade comprava no barco, umas moeditas de cinco, ou dez tostões para os nossos mealheiros e uma garrafa de aguardente para o paizinho. A mãezinha, que tinha sempre todo o trabalho e todo o prazer de ter a família reunida, nunca recebia fosse o que fosse. Nem um quilinho de farinha Branca de Neve (passe a publicidade)!
Recordo, ainda, como se fosse hoje, que o paizinho ficava logo zonzo e muito alegre ao segundo copo. Chegava a dar palmadinhas carinhosas nas costas da avó - gesto admirável - , sabendo nós como ambos nutriam um ódio de estimação mútuo. Um dia, isto há um bom par de anos, excedeu-se com mimos e deu-lhe uma palmada mais forte. Nesse dia tiveram de a levar às urgências do São José para lhe recolocarem uma omoplata no sítio.
Os jantares de família eram bem catitas! Recordo-os tão bem, como se fossem hoje. Pena que nunca mais se fizeram desde aquele infeliz incidente provocado pelo avô. Não sabemos o que estaria a pensar quando pegou fogo à casa. Certo é que nos deu algum gozo observar a casa a arder e os esforços da avó, em vão, para tentar salvar o esqueleto. O que nós rimos com aquela cena!
Conquanto os jantares não tivessem acabado após esta tragédia, agora já não há família e jantares sem família deixaram de ter graça.
Decorrido tanto tempo, continuo sem saber se o avô deixara de tomar os comprimidos para a demência ou se se tinha zangado seriamente com a avó...
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