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O ANJO CAÍDO

por João Castro e Brito, em 17.12.23

o anjo caído3.jpg

Não tinha faltado nada na mesa. Aliás, muito bem composta, é preciso dizê-lo.
Para além da tradicional refeição da consoada e demais iguarias com que todos se haviam regalado, sobrara a natural impaciência pelo soar das doze badaladas da meia noite.
Abrir as prendas que o Menino Jesus lhes tinha deixado no sapatinho, junto à lareira, ia ser o culminar de todas as expectativas. Satisfeitas ou não, era o que se ia constatar após a décima segunda badalada.
As crianças eram as mais impacientes, como era de esperar, na circunstância, pois estavam ansiosas por saber se o Menino Jesus tinha atendido aos seus pedidos.
Subitamente, ouviu-se um som estrondoso vindo da cozinha e, simultaneamente, um leve cheiro a algo queimado, mas bastante aromático.
Contudo, não se tratou de um distúrbio sensorial isolado porque, tanto o estrépido como o cheiro, foram sentidos por todos; inclusive pelos avós que há muito tinham perdido as faculdades auditiva e olfática.
«É o Menino Jesus, é o Menino Jesus!» – gritaram os miúdos, excitados.
«N'é nada, ainda é muito cedo!» – ripostou o pai.
Levantaram-se à pressa dos seus lugares e acorreram à cozinha para ver o que tinha acontecido.
Qual não foi o espanto geral ao depararem-se com um anjo, aparentemente prostrado, com as asas machucadas e fumegantes que, meio tímido, mas muito cortês, se identificou como sendo um anjo da guarda que passava por ali quando um problema numa das asas o forçou a fazer uma aterragem de emergência.
Feitas as apresentações, desfez-se em desculpas e prometeu que ia ressarcir a família pelos prejuízos causados por aquele infeliz contratempo.
Moral da estória: Já não se fazem anjos da guarda como antigamente, é o que é!
Agora, a sério: tenho um costume que mantenho desde pequenino que é agradecer ao meu anjo da guarda por me safar de situações menos boas. É claro que ele não está sempre presente e entendo isso como uma enorme dificuldade em resolver vários casos de aflição ao mesmo tempo.
Penso que não é tarefa fácil, nem mesmo para um anjo da guarda, como deverá depreender.
Divaguei outra vez, peço desculpa.
Agora, a talhe de foice: se você aí, eventual leitor ou leitora, gostar muito de anjos da guarda, veja ou reveja este filme sobre qualquer pretexto!
Boas festas, se for o seu caso, e se assim for, já é suficiente pra me deixar contente.

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UM CONTO DO VIGÁRIO

por João Castro e Brito, em 12.12.23

 

FB_IMG_1702369470725.jpg

Havia adormecido no confessionário, enquanto a boa da Natércia dos Prazeres insistia em pedir perdão pelo pecado da carne, cometido de segunda a segunda, a que se dedicava com o canastrão do sineiro, aliás paraplégico da cintura para cima, o que não tinha qualquer relevância porque o sino deixara de tocar há muito tempo por falta do badalo. Por outro lado, só o facto do sineiro ser paraplégico da cintura para cima já era, segundo o ponto de vista da boa da Natércia dos Prazeres, um milagre de Deus.
De repente, ouviu chamar por ele. Depois, um alarido. E uma voz distinta: "é ele, eu bem o pressenti, é ele...está lá dentro!"
Como não pronunciaram "ele(1)" com letra maiúscula, percebeu que não era Ele, mas o outro.
Saiu do confessionário, pôs um ar fero, avançou para a sacristia, de onde provinha o alvoroço, e notou imediatamente, pelo cheiro intenso a enxofre, que o diabo, o próprio, estava perto.
"Deixem-me passar!" – ordenou imperioso, mas, aparentemente, aborrecido por lhe terem interrompido a sesta. Forçou a porta da sacristia, entrou e encarou o mafarrico que, a custo, chispava fumo e dava ares de não poder com uma gata pelo rabo de cobra sagitada. Bastou-lhe um olhar fugaz para constatar que o pobre diabo estava, realmente, nas lonas.
"Que diabo, estou fartinho de te dizer para não vires, cá, acima dentro das horas de expediente...olha bem para esse buraco que fizeste!..." – interpelou-o.
"Queira Vossa Vigarice desculpar-me, mas a merda do elevador está a precisar de manutenção e acabou-se o cabrão do gás! Q'é que Vossência queria que eu fizesse? Milagres, só no Céu!
Ademais, os pecadores e as pecadoras estão à fresca e começam a pensar que aquilo é a praia do Paraíso, caraças! – justificou-se, a deitar os bofes pela boca.
"Ó diabo, era o que me faltava agora! Eu aqui a ameaçá-los com as chamas eternas e tu, lá em baixo, a dares-lhes banhos de mar...leva já duas botijas para as primeiras impressões...raspa-te! E proibo-te, terminantemente, de praguejares na casa do Senhor!
Ajudou-o a carregar com elas até ao buraco, e preparava-se o demo para recolher ao inferno, quando se lembrou de lhe perguntar: "E enxofre"? Ainda tens muito?"
"Já está abaixo da reserva, saiba Vossa Vigarice!..."
"Deus te valha, meu diabrete!..." – murmurou sem querer, enquanto abria uma arca para retirar vinte e cinco quilos de enxofre em pó que o maligno agradeceu, empenhadamente.
Ele que sempre foi um defensor do diálogo com o inimigo, tapou o buraco com cuidado, aspergiu o local com água-benta, abriu a porta, comunicou aos crentes que estava tudo controlado e regressou à quietude do confessionário, onde, entretanto, a boa da Natércia dos Prazeres não se havia apercebido da sua ausência e continuava empenhada em pedir perdão pelas suas "confrontações" com o sineiro, da cintura para baixo.

in UM CONTO DO VIGÁRIO porque, efectivamente, é uma obra só com um conto e quem escreve um conto, a mais não é obrigado, como dizia alguém, não sei quem.

(1) "Ele" (com maiúscula), na tradição judaico-cristã, é o anjo rebelde (Satanás), que foi expulso do Céu e desceu ao Inferno. No entanto, atribuí-lhe o estatuto de uma entidade menor, nesta estória. Meu caro Lúcifer, queira aceitar, desde já, as minhas mais sinceras desculpas.

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