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VOLTA RUIZINHO!

por João Castro e Brito, em 26.01.22

volta ruizinho.jpg

Volta, Ruizinho, meu querido filho!
A casa é um deserto desaprazível e inóspito desde que desertaste!
A mãezinha e o paizinho já compraram uma "smart TV" para substituir o velho Schaub Lorenz (passe a publicidade), que quebraste com um "Tobi Mae Gueri" (pontapé frontal voador).
Foi um favor que nos fizeste, meu filho! A gente até nem tinha coragem de o fazer, tal era a nossa afeição pelo televisor.
O paizinho mandou reconstruir a mesa – que lhe custou os olhos da cara – que partiste ao meio com uma "Hiji Otoshi - Uti" (cotovelada de cima para baixo).
A mãezinha fartou-se de chatear a molécula ao paizinho, dizendo-lhe que, pelo preço que o paizinho pagou pelo conserto, podia ter comprado duas mesas de pinho na IKEA (passe a publicidade) e lá nisso tenho de dar a mão à palmatória, meu filho!
Porém, o paizinho teima em fazer as coisas à sua maneira e é deixá-lo; albarda-se o burro à vontade do dono.
A avozinha gastou o dinheirinho todo da reforma deste mês, e mais uns trocos que tinha posto de parte, para substituir a prótese dentária que partiste, impensadamente, com um "Mae Keague" (pontapé elevado perna dura).
Os vidros da porta de entrada do prédio, que estilhaçaste com um "Soto Mawashi" (Pontapé de fora para dentro), também foram substituídos.
O avôzinho abriu os cordões à bolsa e disse à mãezinha para comprar um frigorífico novo para substituir aquele que amolgaste com um "Seiken Guedan Zuki" (soco baixo).
Volta, Ruizinho! Volta, querido!
O vizinho do rés-do-chão esquerdo garante, a pés juntos, que já não se lembra quem foi que lhe meteu uma porta do carro adentro com um " Kaiten - Soto Mawashi" (pontapé giratório de fora para dentro).
A gata da vizinha do segundo direito está a recuperar muito bem depois do "Kansetsu Gueri" (pontapé lateral baixo) que lhe deste, inadvertidamente. Nós até sublinhámos que o fizeste sem intenção e acrescentámos que descontas para a Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais (LPDA) e tudo, Ruizinho!
Mas isso já passou, meu filho.
Agora, estás prestes a deixar o Centro de Reabilitação e o tempo tudo cura; e nós estamos desertos para te ver, meu rico menino!
Volta, Ruizinho!
Aguas passadas não movem moinhos e o que lá vai, lá vai, querido!
Esperamos por ti com ansiedade e expectativa, desejosos que regresses!
Vais ser bem recebido, meu filho; aliás, como mereces!
Demais a mais, a mãezinha e o paizinho já compraram pistolas de vários calibres e têm praticado tiro ao alvo com regularidade.
O paizinho garante que te mete uma bala no meio da testa, antes que tenhas tempo para exclamar "ai, minha rica mãezinha!". E, mesmo que ainda te reste algum para esboçar algum tipo de arrependimento, a mãezinha jura a pés juntos que faz orelhas moucas, meu querido filhinho!
Volta, Ruizinho, volta!

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VINGANÇA NO WC

por João Castro e Brito, em 21.01.22

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A traição conjugal levou-me, de degrau em degrau, nada mais nada menos do que trinta e nove degraus, até este triste estado de desditosa solidão em que me encontro.
No entanto, já fui muito feliz. Oh, se fui! Amava-a com todo o meu ser, alma inclusive! Pensava que tal sentimento era mútuo. Porém, "Erros meus, má fortuna, amor ardente" e o dela ausente...
A verdade, nua e crua (soava melhor, a verdade escondida ou, até, a verdade da mentira, mas que se lixe), "além de indecente, é dura de roer", como dizia alguém, não sei quem...
Nos primeiros sete anos de relacionamento amoroso, íamos sempre para a praia na última semana de Novembro porque o dinheiro não abundava. Ademais, sendo desempregado militante desde a primeira hora, era só ela a ganhar para os dois, pelo que tinha de usar muita parcimónia para equilibrar a coisa. Contudo, a pobre não se importava, coitadinha! Pelo menos aparentemente, pois nunca lhe vislumbrei um queixume; uma exigência; uma nota de desagrado ou um trejeito de enfado. Isto, não obstante ela ser muito trejeitosa, tenho de reconhecer. Depois, tínhamos amor e a cabana dela e eu pensava que eram factores suficientes para alimentar a chama da paixão!
Sei que "amor e uma cabana" (expressão queirosiana) é uma ideia banal do amor romântico, mas, e daí? Eu acreditava piamente nela (na ideia), prontos (abomino a palavra "prontos"), q'é que querem?
O idílio durou até ao dia em que vi a adúltera nos braços do Ilídio. É verdade, afinal havia outro, um gajo chamado Ilídio, um empata idílios do caraças. Foi num dia infeliz em que cheguei mais cedo a casa. Talvez, o dia mais lixado da minha vida, a seguir à morte do meu estimado cágado, Acácio.
Desorientado e com uma raiva mal contida, abandonei-a nesse mesmo dia (a casa) e aluguei um quarto na Buraca.
Embriagado no cálice da dor ("cálice da dor", xi, valha-me Deus!), passei amargurados dias e noites a fio, a imaginá-los no bem bom. Ele, um Dom Juan DeMarco de Canaveses, instalado na casa dela; a deitar-se na cama dela; a ver o CMTV (passe a publicidade) no LCD dela; a sentar o cu usurpador na sanita dela; a comer à tripa-forra, à borla e se mais houvesse. Que raiva!
Mas, prontos (olha, saiu-me!), o que lá vai lá vai e, graças a Deus, consegui um novo emprego. Fui despedido do anterior porque, com as espertinas constantes, só conseguia adormecer quando o sol se levantava. Deste modo, pegava sempre muito tarde ao trabalho. Mais a mais o patrão nem ia à bola comigo, apesar de sermos adeptos do mesmo clube.
Agora, confesso que estou porreiro; trabalho nas instalações sanitárias de uma superfície comercial e ninguém me chateia, a não ser o cheiro fétido a urina que, às vezes, tenho de gramar. É a mania dos urinóis ecológicos sem água, é o que é! Mas, avancemos porque o melhor está para vir e estou em pulgas para contar.
Ele, há coisas que não posso deixar passar em branco, apesar de não ser vingativo; nem pouco mais ou menos!
Ilídio, o intruso, frequenta regularmente o centro comercial onde trabalho e, naturalmente, costuma verter águas. Só que o faz com exagerada frequência e, cada vez que o faz, demora cerca de meia hora a despejar a bexiga. Sei, por portas e travessas, que tem uma próstata do tamanho de um melão de Almeirim. Além disso, e não é pouco, é surdo como uma porta, factor que joga a favor do meu intento.
Mas o que mais interessa para o bom desfecho desta estória, que é, afinal, a consumação do meu plano, é que nos cruzámos poucas vezes e, entretanto, mudei radicalmente a minha aparência, ainda que o gajo seja um cegueta do camandro.
Por precaução pintei o cabelo de louro e rapei aquela barba que me dava um ar de jihadista islâmico português (?!). Penso que são artifícios suficientes para fortalecerem o meu propósito.
Ora, tenho andado cá a congeminar sobre a melhor forma de o concretizar.
No fundo, trata-se de um caso elementar de justiça e de uma maneira exemplar de castigar a infiel criatura pela violação do sagrado dever recíproco de fidelidade.
Ora, um dia destes comprei três metros de fio eléctrico e instalei-o, discretamente, dentro do autoclismo, ligado ao botão de descarga. Todavia, pensei três vezes e concluí que podia falhar o objectivo se, no momento, houvesse falta de corrente eléctrica. Além disso, acontecendo tal imprevisto durante o acto da electrocussão, como é que eu ia justificar, perante a justiça, os olhos de carneiro mal morto do sacana do Ilídio? Podia ser a morte do artista, não acham? Como já conheço de ginjeira os hábitos dele, sei que mais tarde ou mais cedo, quando lhe der a vontade de mijar, será uma questão de muito menos do que os trinta minutos que leva a fazê-lo, isso é quase garantido! Vai ser o tempo necessário para o empurrar pela sanita abaixo e descarregar o dito reservatório. Querem vingança mais perfeita?
Por muito contraditório que vos pareça, mesmo não sendo de vinganças, quem mas faz paga-mas!
Assim, Deus me ajude a materializar a ideia. 

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SINDICATO DOS POLÍTICOS

por João Castro e Brito, em 16.01.22

sindicato dos políticos.jpg

O Governo da República está a estudar a hipótese, nunca vista e tampouco imaginada, de se constituir, a médio prazo, uma grande central sindical que englobe, pelo menos, três sindicatos representativos da classe política: um frontal, outro occipital e um terceiro parietal. Este último em plano inclinado para os políticos irem de carrinho.
Pensa-se que será o primeiro país da UE a debater o assunto com muita rectidão, honradez e de forma aberta, sem estigmas nem labéus.
Muito antes deste debate que, não sendo quinzenal, é de primordial importância para a vida nacional – sublinhe-se – , teria havido uma iniciativa, aprovada pela generalidade dos deputados da AR, no sentido de se recolherem assinaturas e serem criadas as condições necessárias para se formar uma associação sócio-profissional com várias tendências partidárias: a primeira para a partida, a segunda para a largada e uma terceira para a fugida. Porém, um louro (vulgo papagaio) do governo sublinha que, por enquanto, ainda está tudo em águas paradas de bacalhau demolhado.
Todavia, dada a natureza do tema, ainda que por enquanto não passe de uma intenção, torna-se evidente a sua complexidade se forem revelados outros pontos em discussão. Assim, há quem defenda a regionalização, distribuindo-se, desse modo, os políticos pelo Norte, pelo Centro, pelo Sul e, naturalmente, pelas regiões autónomas.
Há, também, quem defenda acerrimamente o centralismo, advogando que fique tudo como dantes, "quartel-general em Abrantes" ou seja: Todos os políticos inscritos permanecem no Pequeno-Ocidente-Lusitano, com direito a levarem os jornais A Bola, o Record, O Jogo e o Correio da Manhã para a AR. 
Há, ainda e finalmente, quem defenda com unhas e dentes uma organização com pendor mais marcial, tipo Esquerda-Direita-Opus-Dois, porém, mais pragmática e, naturalmente, mais musculada. É claro que terá de ser um organismo com os pés bem assentes no chão, com batimentos fortes e cadenciados, e de preferência em formação de ordem unida.
Contudo, outras tendências minoritárias lideradas, sobretudo, por independentes de todos os quadrantes ideológicos: partidos ou movimentos políticos, grupos religiosos e até outras vocações inconfessáveis (seria chato confessá-las aqui, como devem calcular), defendem que os políticos profissionais não são trabalhadores por conta própria, nem por conta de outrem, devendo por isso associar-se em cooperativas de produção e comércio de azeite, dado que, de uma maneira geral, são uns grandes azeiteiros!
Um dos pontos com mais enfoque ("enfoque" fica mesmo bem aqui, q'é q'acham?) nas discussões já tidas e havidas – passe a redundância – , centra-se na garantia de, para além do direito ao direito, os políticos passarem a ter direito aos discurso directo, indirecto, indirecto livre, de direito e redondo. Este último, só para não se tornar chato. Ademais, reivindicam menos horas de trabalho de terça a quinta e o direito a coçarem os tomates (somente) nos intervalos das sessões parlamentares. É claro que, neste particular, as mulheres podem reclamar discriminação, podendo, para o efeito, apresentar um requerimento estatutário de igualdade. No entanto tratar-se-á, apenas, de uma formalidade.
Os mentores desta iniciativa corporativista, José Onófrio Pires do Ó e Tolentino Sá de Miranda e Vasconcelos, que preferiram manter o anonimato, deputados pelos PDMC (Partido Democrático na MÓ de Cima), no governo, e PDMB (Partido Democrático na MÓ de Baixo), na oposição, respectivamente, alegam que esta tomada de posição é um "anseio de todos os políticos democratas e, sobretudo, um imperativo nacional, a bem da Nação e dos portugueses!"
A ver vamos, depois do dia 30, se esta tão nobre e justa pretensão tem pernas para andar. Estou convencido de que sim, pois é anseio transversal a todos; da extrema-direita à extrema-esquerda, passando pelo centro onde está a virtude.

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PURA MAGIA EM TEMPO DE PANDEMIA

por João Castro e Brito, em 14.01.22

magia em tempos de pandemia.png

Hoje, lembrei-me duns truques de magia, muito giros e nada complicados, que aprendi com alguém, não sei quem, mas isso é irrelevante para esta estória. Atão, o primeiro é assim: peguem em duas moedas novas de dois cêntimos, daquelas pequeninas e ainda amarelinhas, e tentem trocá-las por duas de dois euros. É claro que vão ser acusados de batotice e ouvir coisas do género "Assim não vale!" e outras merdas chatas que me escuso de repetir aqui por uma questão de decoro.
Porém, deixo-vos um conselho: não desistam, por mor de Deus, e repitam tantas vezes quantas as que forem necessárias ou, então, exaustivamente (exaustivamente, neste contexto, quer dizer quase a desfalecer) até terem êxito.
 
Segundo truque: peguem numa caixa que pode ser de sapatos, biscoitos ou uma caixa-forte, consoante as vossas disponibilidades.
Obtida a caixa, vão depositando os trocos miúdos que encontrarem nos fundos dos bolsos, sobretudo nos primeiros dias do mês. Quando estiverem com os fundos falsos ou sem fundos de maneio e tampouco fundos de reserva, quer dizer que bateram a fundo. Nesse sentido, dirijam-se à caixa (não confundir com CGD), digam as palavras mágicas que acham que são as mais adequadas para o momento e abram a caixa.
Graças a este acto de magia pura e inocente, após somarem os trocos que conseguiram juntar, poderão respirar de alívio, pelo menos, durante mais 2 minutos por mês, pois já devem dar para comprar meia-dúzia de papos-secos.
 
Terceiro e último truque: não sei se já pensaram convidar alguém para jantar, depois de passar esta cena mazinha, mas olhem, pela minha parte, ando cheio de vontade de o fazer e, assim, deixo-vos aqui mais uma sugestão ou passe de magia pura, pois é disso que se trata.
É claro que parece mal não convidar, uma vez que também já foram convidados há muito tempo e aceitaram os convites sem reservas. Aliás, deixem que vos diga que agiram com muito sofisma porque já sabiam que andava por cá um vírus lixado que ia obrigar a malta a confinar e, nesse sentido, aceitaram todos os convites dos vossos amigos, antes que se fizesse tarde. Deixem lá, não fiquem com a consciência pesada; no vosso lugar, faria o mesmo.
Mas adiante senão disperso-me. Então é assim: as pessoas vêm se (não leva hífen, nada de confusões) forem convidadas, evidentemente, comparecendo à hora e dia previamente definidos, com máscara e respeitando a "distância social" de dois metros.
Então, vocês abrem a porta, esboçam um olhar de surpresa, sem deixarem de sorrir, e dizem: «Mas não era para hoje!...»
Obviamente, não vão deixar os convidados pendurados por causa de um mal-entendido provocado por eles. Assim, mandam-nos descalçar os sapatos, deixá-los à porta, lavar bem as mãos e sentá-los à mesa bem espaçados uns dos outros. Quem não couber, fica a aguardar em fila indiana, à distância regulamentar, que outros acabem de comer e se ponham a mexer.
A coisa resolve-se com umas salsichas e uns ovos estrelados e as pessoas, naturalmente, vão pedir desculpa pelo transtorno. É uma maneira simpática de vocês pouparem umas massas porque os tempos não estão de feição para servir lagosta suada ou perdiz estufada com vinho do Porto.
Por outro lado, resulta sempre porque vão pensar que os anfitriões, realmente, não esperavam visitas para comer e o jantar é oferecido com uma simplicidade mágica.
E não me lembro de mais truques, peço, encarecidamente, desculpa.
Olhem, tenham um bom fim de semana e não acreditem em favas contadas só porque já levaram a dose de reforço da vacina. Cautelas e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém!

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QUARENTA ANOS

por João Castro e Brito, em 13.01.22

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Fazia quarenta anos que Ricardo partira para a França em busca de melhores condições de vida. Porém, desde que tomara a difícil iniciativa de abandonar a sua "zona de conforto", morria de saudades da sua esposa e do seu lindo país.
Além desses sentimentos, fortemente nostálgicos, sentia a vida a fugir-lhe e, por conseguinte, tinha pressa de retornar à terra que o vira nascer.
Os médicos tinham-no aconselhado a regressar a Portugal, o mais breve possível porque, se continuasse a adiar a sua vinda, podia dar-se o caso de se esquecer de tal propósito, dado que parecia alhear-se, cada vez mais, de tudo.
Para Rita, os últimos quarenta anos também tinham sido extensos e penosos. Anos ao longo dos quais tinha aguardado, ansiosamente, o regresso do seu marido amado.
Nos seus sonhos e fantasias de mulher solitária, conseguia evocar aquela saudosa imagem, embora menos clara. Contudo, ainda capaz de alimentar a chama do amor e manter viva a sensualidade que a caracterizava.
Quarenta anos tinham sido uma eternidade, mas Rita havia resistido às tentações, sabe Deus como!
O homem alto, moreno, bonito, imaculadamente escanhoado que lhe dera o derradeiro beijo de despedida na estação de Santa Apolónia, jamais lhe saíra do pensamento.
Finalmente, chegara o dia tão ardentemente aguardado: o dia do regresso do seu Ricardo.
Um bom par de anos antes, havia recebido uma carta dele manifestando-lhe a intenção de regressar a casa, já debilitado pela doença de Alzheimer de que padecia, e cansado de errar por terras gaulesas. Afinal, errare humanum est como diria o outro se fosse vivo.
Agora, Rita esperava-o na estação de Santa Apolónia, naturalmente inquieta. Quarenta anos são um evo e não sabia se iria reconhecê-lo, passado tanto tempo. Entretanto, começavam a desembarcar os primeiros passageiros, provenientes de Paris, carregados de bagagens.
Rita, procurava descobrir, impaciente, um rosto familiar entre os grupos de pessoas que saíam do comboio.
Subitamente, conseguiu vislumbrar um homem alto, moreno e lindo. "Meu Deus, será ele?!" – pensou, o coração em ritmo acelerado – Era tal e qual o seu homem de há quarenta anos com os mesmos trejeitos, a mesma expressão, o mesmo meneio. Foi como se o tempo tivesse estacado na despedida e, volvidos tantos anos, recomeçasse no exacto ponto onde fora interrompido.
Absorta no feliz reencontro, nem quis saber do insólito acontecimento. Só podia ser um milagre o que lhe estava a acontecer e esqueceu momentaneamente todas as dores que a afligiam. Imediatamente, movida por um desejo reprimido durante décadas, correu apaixonadamente para os braços do filho de Ricardo.

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Apesar do segredo em que se encontra envolvida, segundo informação de fontes inseguras, penso estar em condições de afiançar que, nos modernos laboratórios do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo George (INSDRG), descobriu-se, há pouco tempo, a primeira greve não política da história.
Por via de regra, os segredos em Portugal têm este efeito: passam de segredos ocultos a segredos de polichinelo em menos de um farelo. Pelo menos, aqueles que não implicam descobrir carecas ilustres; e quando se descobrem, convém não puxar muito o fio à meada, senão seria o fim do mundo em cuecas. Assim, lá se vai descobrindo uma ou outra para sossegar as hostes e pouco mais. Mas isso, estamos carecas de saber. Divaguei, peço desculpa. Adiante:
O achado surgiu, repentinamente, sem aviso prévio e de repuxo. Tratou-se, efectivamente, da greve de uma prisão de ventre aguda e, por ironia do destino, na pessoa de um cu apolítico.
Para quem não sabe, as greves não políticas das prisões de ventre agudas são as mais raras e caracterizam-se por acções de despejo levadas a cabo por fezes anarquistas, vulgarmente espontâneas e muito moles, em contraposição com as duras, difíceis de expulsar sem a acção musculada da polícia de intervenção ou, em último recurso, de clisteres.
A prisão de ventre, tecnicamente conhecida por obstipação (não confundir com constipation que é uma vulgar constipação em inglês), afecta actualmente cerca de 99,9 por cento da população nacional, mais coisa menos coisa.
Contudo, segundo as mesmas fontes, tal descoberta, se não for devidamente controlada, pode atingir proporções alarmantes para a saúde pública, a ponto de ocorrer, inclusive, uma pandemia (só nos faltava mais uma, valha-nos Deus!).
Para minimizar os efeitos imediatos desta greve, uma resolução apressada da Assembleia da República vai nomear na próxima semana uma comissão parlamentar de inquérito a este fenómeno reivindicativo.
Há muito tempo que os técnicos do INSDRG procuravam analisar minuciosamente, sem resultados positivos, quaisquer indícios que pudessem levar, até agora, à descoberta deste tipo de greve que, como referi, é raríssimo.
No entanto, por muito contraditório que possa parecer, o achado poderá desempenhar um papel determinante na economia de papel higiénico e na vida social e económica das famílias.
A talhe de foice e se bem me lembro, é de realçar o contributo meritório de um antigo Ministro da Saúde, Paulo Macedo, ao dar o primeiro passo no sentido de poupar despesas, com este tipo de papel fino e absorvente, nos hospitais e centros de saúde.
Pensa-se, em meios próximos de São Bento, embora sem corroboração oficial, que o actual governo, naturalmente com o indispensável aval do Banco de Portugal, já terá alegadamente assegurado, a breve trecho, a produção de um fármaco, concebido no Instituto Superior de Ciências Gastronómicas e Digestivas (ISCGD). Ora, tal fármaco vai concorrer para intensificar a coprostasia (era chato escrever retenção das fezes), cujo objectivo vital é evitar, a todo o transe, na órbita do trânsito intestinal, perturbações desnecessárias da ordem entérica, inclusive perturbação do sossego (em caso de denúncia, invocar o artigo 24º, nº2, do Regulamento Geral do Ruído).
Segundo especialistas, a generalização da prisão de ventre poderia constituir um autêntico seguro de vida para qualquer governo em, praticamente, todos os domínios da vida social.
A grande questão que se coloca é se, porventura, a sanita até aqui desempenhando um papel determinante no escoamento de matérias excretícias, se vai tornar num mero objecto decorativo e daqui a cem anos passe a ser encarada como mais uma alegoria.
Entretanto, enquanto o pau vai e vem, deixo aqui o apelo:
Diga NÃO às greves não políticas das prisões de ventre agudas!
DENUNCIE QUALQUER PEIDO ACINTOSO, PERTURBADOR DA ORDEM INTESTINAL E PRESSAGIADOR DE EVACUAÇÃO ANTETEMPO!

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