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Criei este blogue com a ideia de o rechear com estórias rutilantes, ainda que às vezes embaciadas. Penso que são escritas sagazes e transparentes, embora com reservas e alguma indecência à mistura. No entanto, honestas.
Depois de ter rompido pela enésima vez mais um compromisso, assumido pública e solenemente, e de ter feito orelhas moucas (não confundir com orelhas-de-abade) às recomendações de fiscalização de despesas de representação e outras fixas e variáveis, indevidamente não documentadas e passíveis de tributação fiscal e extrafiscal, e segundo fontes que reputo não possuírem a mínima reputação, teria assinado um compromisso no sentido de anular todas as tomadas de compromissos anteriores, já que esses compromissos poriam fim a qualquer tomada de compromisso, fosse como fosse e com quem fosse.
Ficaria assim sem efeito o compromisso que o ligaria a outros acertos, os quais estariam em sério risco de ser rescindidos por falta de ajustes directos. Inclusive este último compromisso que incluiria, presumivelmente, uma cláusula exactamente no sentido da prudência porque isto, meu filho, está preto e mais vale pôr o preto no branco. Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém!
Interrogado por um repórter anónimo (um repórter anónimo, valha-te Deus!), teria afirmado:
“É normal em democracia que o cumprimento escrupuloso dos compromissos, de que sempre nos orgulhámos, se desenrole dentro da mais estrita obediência aos deveres constitucionais e aos legítimos interesses do povo que, como se sabe, são muito variáveis.
Gostaria, portanto, de reafirmar que é com a cabeça bem assente, para não me cair aos pés, que assino este compromisso, mas, por muito contraditório que pareça, sem compromisso de espécie alguma, pois não estou aqui para fazer a cabeça de ninguém e muito menos meter na cabeça de alguém. Nem tal coisa me passa pela cabeça! Disso ponho a cabeça sobre o que for necessário, nem que tenha de me atirar de cabeça. É um compromisso. Juro!»
Hoje, consagro este epítome (também gosto muito da palavra "epítome") a duas personagens de uma das mais famosas tragédias da obra Shakespereana.
No caso particular, penso que não ficará atrás de uma verdadeira tragédia grega. Acho que não encontro melhor epitáfio para lhes prestar, senão dedicar-lhes esta síntese. Julgo que quem conseguir ler isto até ao fim deverá estar de acordo comigo.
Como as estórias têm de começar por algum lado, começo pelo imaginário nariz de Cleópatra. Era tão evidente e tão exclusivo que não podia pegar nesta estória por outro lado; temos de convir que era um verdadeiro monumento. Até Marie Robes Pierre que não era dado a divagações particulares sobre anatomia humana, escrevera nas suas "Memórias": "se o nariz de Cleo fosse mais curto, não teria mudado a face do mundo". Ora, apesar de considerar Marie Robes Pierre um dos expoentes máximos do iluminismo, não posso estar mais em desacordo com a pouca iluminação de tal presunção. Quando muito, teria mudado a própria face ou até, mesmo, a dos seus amantes. Mas quem sou eu para contrariar tais fundamentos ou as suas pressuposições? Deus me livre, apesar de não ser religioso!
Depois desta breve introdução, é aqui que entram duas personagens que alimentavam animosidades recalcitrantes entre si, sem razão aparente, segundo reza esta estória: o imperador Júlio César e Pompeu, um general romano natural de Pompeia.
Obviamente que, provocação daqui e provocação dali, só podia dar escaramuça e o inevitável aconteceu, como tudo o que é inevitável.
Como era previsível, a Legião Romana do imperador era em maior número e altamente organizada e, por consequência, derrotou facilmente o bando de maltrapilhos e indisciplinados fenícios e cartagineses de Pompeu na célebre batalha campestre de Farsália. Acerca desta batalha, sabe-se agora que, após profundas pesquisas arqueológicas a cerca de meio metro, veio a confirmar-se através do carbono 14 que aquilo não passou de uma farsa.
Há quem sustente a tese de que Pompeu, depois de alguns reveses que não passaram pelos crivos desta estória, solicitou o estatuto de refugiado político ao Egipto.
Obedecendo a esta proposição, vou continuar a descrever o que aconteceu a seguir, incidindo particularmente na teoria do pedido de asilo político de Pompeu. Só para não acabar isto abruptamente, senão perde toda a graça . Então, sucedeu o seguinte:
Por essa altura subiu ao trono Ptolomeu que, desde pequenino, não ia à bola com Pompeu, vá-se lá saber porquê. Vai daí, matou-o enquanto este dormia uma sesta. É claro que César, apesar de adversário figadal de Pompeu na grande farsada de Farsália, não gostou e, por conseguinte, não foi de intrigas: deslocou-se pessoalmente ao Egipto para repor a ordem no império, tendo, para o efeito, degolado o Ptolomeu com requintes de malvadez, oferecendo a sua cabeça de bandeja... perdão, oferecendo o trono de bandeja à nova rainha, Cleópatra...
É aqui que reentra uma das personagens principais desta tragédia que, devido ao tamanho do nariz, já vinha a despertar há uma porrada de tempo desejos lúbricos no imperador...
Pois, acontece a qualquer pessoa, mesmo ao ti' César porque a vida não é só chegar, ver e vencer!
Ora, Cleo, como não podia deixar de ser, partilhou os seus lençóis com o senhor. Porém, naqueles tempos ainda não havia panaceias para levantar a moral e, além disso o velho sofria de arritmia galopante, uma doença chata que herdara da sua progenitora. Efectivamente, ele era um grande filho da mãe doente, desde o primeiro vagido.
Em face desse problema genético, César regressou a Roma para fazer um tratamento com águas termais, mas não resultou e, é claro, foi definhando aos poucos até que os médicos chegaram à triste conclusão de que o melhor era eutanasiar o homem; aquilo era sofrimento a mais...
É aqui que entra outra personagem essencial para a continuação desta estória: Marco António, ex-ajudante de César, que tinha formado um triunvirato de conveniência com Lépido e Octávio, dividindo tarefas administrativas do Estado. Quer dizer: todas menos dormirem, à vez, com Cleo; isso estava fora de questão. Por isso, MA tomou uma decisão drástica; ou seja: Como, desde os tempos de César, já andava a arrastar a túnica a Cleo, às escondidas do imperador, para não ter a concorrência por perto, despachou Lépido para a Patagónia, Octávio para os Montes Hermínios e rumou ao Egipto. Antes de lá chegar, Cleo, só pelo cheiro, já sabia da sua vinda. Pudera!...
A pirâmide de Queóps desmoronou-se; as esfinges de Gisé e Tebas desfingeram-se; os Deuses rejubilaram e enfim, foi o bom e o bonito! Cleópatra havia-se esmerado na recepção a MA. Com mimos assim, era de esperar que o pobre estivesse perdido de amor, isso é factual; basta conhecer um pouco desta estória.
Mesmo com o rosto cheio de equimoses que mais parecia uma paisagem lunar, MA nunca desistiu da sua rainha. Paixões assim tão lindas acontecem uma vez de mil em mil anos; Pedro e Inês, comparados com este casal, deviam ser como o cão e a gata!
Por Cleo, MA era capaz de guerrear com Hórus e Doktem; que se lixassem, ele desejava desesperadamente! Havia o ónus do nariz da sua amada, que doía para caraças, mas que fazer se naquele tempo ainda não tinham inventado as cirurgias plásticas?!
Assim, como assim, concordaram em passar a fazer amor de lado; do mal o menos!...
É aqui que reentra, finalmente, outra personagem: Octávio, regressado a Roma. Como não era parvo, apesar de medir metro e meio de altura, aproveitou-se do idílio dos amantes para atacar o Egipto à socapa ou seja, pela calada da noite.
Cleo, para além de ser muito batida em batalhas na cama, também o era na batalha naval. Assim, fez uma pausa entre dois concúbitos (sem tirar, sublinhe-se) com MA e enviou ao encontro de Octávio a sua "invencível armada". Uma armada onde se incluíam algumas naus catrinetas cedidas pelo reino de Portugal de então, ao abrigo de um acordo de cooperação e defesa, bilaterais, celebrado entre ambos os reinos. Porém, foi derrotada; em parte porque muitas naus catrinetas metiam água e MA, atormentado pela dor e pela loucura, veio a falecer de desgosto e sífilis.
Octávio que, desde os tempos de MA, já cobiçava o nariz soberbo de Cleo, preparava-se, agora, para tomar para si tão ansiado e maravilhoso despojo de guerra. Todavia, Cleo estava pelos cabelos com todos os imperadores, senadores, cônsules, consulesas, pretores, tribunos, governadores, duques, duquesas, legados, legionários, et cetera, e (acho que vou rematar isto às três pancadas porque a parte final não me está a correr nada bem, peço desculpa) suicidou-se com veneno de cobra-de-capuz (chama-se assim porque o raio da cobra, ainda hoje, anda sempre encapuzada). Todavia, teve morte lenta e cruel porque morreu com indescritível sofrimento. Foi Shakespeare quem o disse e não altero nem uma vírgula, pá, desculpem lá!
Recapitulando e resumindo: este é o epílogo da minha história. Afinal, o desenlace habitual de todas as histórias de vida: a morte.
O desfecho da minha, em alguns aspectos, não foi muito dissimilar de outros. Num ponto fundamental penso que, na generalidade, todos estamos de acordo: é sempre uma tragédia finar. Sobretudo para quem, há muito, tinha passado do prazo, como foi o meu caso.
No entanto, ainda não me sentia preparado para ir de abalada, pois, por muito que lamentasse que não passava de um empecilho e desabafasse que já cá não estava a fazer nada, era a última coisa que eu desejava.
Enfim, "só faz falta quem cá está", como disse alguém, não sei quem. Para os que sobrevivem, o tempo é bom conselheiro e, por conseguinte, daqui a meia dúzia de anos ninguém se lembrará de mim.
Bem, para ser honesto, não contribuí grande coisa para ser recordado mais tarde. Contudo, agora, é-me indiferente...
Ainda alentei alguma esperança numa prerrogativa divina. Sei lá, se calhar porque houve coisas que não tive tempo de fazer, apesar de ter sido mais do que suficiente, o tempo que tive para as realizar, por muito paradoxal que possa parecer. Porém, não era Deus, mas a morte, por destino ou acaso, a reclamar a minha sorte.
Provavelmente, teria muito para contar pelo meio, mas a idade e o consequente declínio, encarregaram-se de apagar quase tudo da memória. Além disso, não tinha jeito nem visão para registar acontecimentos no papel, não obstante andar sempre a dizer que a minha vida dava um romance. Tenho de convir que foi repleta de dificuldades e decepções causadas pelo goro de algumas expectativas. Não por promessas porque nunca ninguém me prometera fosse o que fosse, mas por probabilidades. A concretização de objectivos - ou o seu malogro - assenta nas escolhas e caminhos que fazemos e tomamos, mas também em possibilidades mais ou menos aleatórias. No meu caso, diminutas em êxitos.
Contudo, sem embargo dos meus lapsos de memória, inevitáveis neste derradeiro acto, lembro-me de dois, se assim os devo entender: um de quando, por mero acaso, reencontrei o meu pai perto da Rua das Pretas em Lisboa, ao fim de quatro anos de silêncio, nunca quebrado por ambos. O dele era justificável, não tendo como quebrá-lo, dado que desconhecia o meu paradeiro. Presumia, apenas, que eu estivesse na capital. Foi um acaso que caiu como sopa no mel, digamos assim, porque fazia, mais ou menos, um mês que eu acabara de regressar de uma estadia de um ano no Porto e estava à rasca, sem um tostão para as despesas essenciais (vulgo sobreviver). Inclusive, a dona da pensão onde tinha um quarto, só não me pôs na rua por uma questão de caridade...
Depois deste episódio, destituído de qualquer manifestação emocional, o senhor pareceu perdoar-me o ultraje de ter saído de casa "à francesa". De modo que selou o restabelecimento das relações com um aperto de mão e uma nota de cem escudos. Importância que me passaria a enviar religiosamente todos os meses, desde aquele momento. Pelo menos até que eu arranjasse "mulher para sustentar"...
O segundo êxito, julgo que foi o mais marcante, naturalmente. No mínimo, alterou radicalmente o meu modus vivendi: o de construir uma família. Todavia, mesmo esse, foi alicerçado com a ajuda inestimável da minha parceira da vida. Com efeito, tão essencial e tão indefinível que não a pude estimar ou não tive vontade de o fazer, guardando a definição de tamanha grandeza, egoisticamente, só para mim.
Digamos que nem tudo foram falhas na minha vida. Houve um ou outro resultado feliz, quase sempre, fruto de casualidades. Nunca fui grande lutador. Entenda-se, por definição pessoal: não, o lutar pela subsistência, algo que fui obrigado a fazer, instintivamente, quando fugi de casa, mas esforçar-me para ter uma vida mais folgada e com menos embaraços. Julgo que me faltou a ausência de rigor no cumprimento de regras, atributo dos espertalhões. Herdara de meu pai um forte sentido moral e pensava que, se saísse da linha, ia viver os meus dias com esse peso e a consequente inquietação. Porventura, à espera de um julgamento severo do progenitor cuja rigidez de princípios estava sempre presente na minha lembrança como uma cisma.
A acrescentar às minhas limitações de vária ordem, já na fase final, havia a falta de vontade para me debruçar sobre coisas do passado. Pretendia durar os últimos tempos da minha existência sem alterar substancialmente a rotina a que me tinha habituado desde sempre. Até, mesmo, no tempo em que a minha companheira era viva. Sem grandes sobressaltos, sem grandes incómodos e sem que me importunassem muito.
Utilizando, abusivamente, uma expressão, dita "Zen", que se pode adequar à minha idiossincrasia, eu resumiria a minha vida passada a isto: "Não andem atrás de mim porque posso desconhecer o caminho. Não andem à minha frente porque posso não querer seguir-vos. Não andem ao meu lado; deixem-me, apenas, andar sozinho." Foi assim que vivi e assim acabei...
Em conclusão: não lamentem a minha morte, assim como eu não lamento a vida que tive e os fragmentos de felicidade que desperdicei. Não tive culpa de ter vivido durante muito tempo e muito menos ter sabido aproveitá-lo conforme se proporcionou ou calhou, sempre de forma acidental. Pouco generoso, diga-se em abono da verdade, mas também nunca fiz grande esforço para tirar algum proveito dessa escassa generosidade...
Por último, não me posso queixar do amor incondicional da minha família, embora em vida nunca tivesse querido fazer um acto de contrição por não ter correspondido de igual modo ou de não ter jeito para expressar a minha gratidão por dádiva tão generosa...
Foi como foi, pronto e ponto. Cada um é para o que nasce, como diz o adágio.
Fui.
Desembarquei, pela primeira vez, em Lisboa numa manhã fresca e cinzenta de Outono. Decorria o ano de 1942.
Há fragmentos de memória que não se desvanecem, assim, do pé para a mão. Um qualquer sentido, uma vez subtil, outra vez abrupto, fá-los despertar, regressando momentaneamente ao pensamento; como se tivesse acontecido ontem.
Lembro-me que soprava, do lado do Cais das Colunas, uma aragem com cheiro intenso a maresia. Jamais vou esquecer esta particularidade. Fizera-me recordar as férias passadas no Algarve, entre Agosto e Setembro. Meu pai alugava casa em Albufeira todos os anos.
Assim que recebia as rendas das fazendas que tinham sobrevivido à loucura perdulária de seu pai, meu avô, estava pronto para partir com a família. E a família só ficava completa com a inclusão do seu estimado e inseparável cão na comitiva.
Era uma azáfama, a preparação da trouxa para o embarque. Ninguém ousava dormir na noite que antecedia o momento mágico da partida. Tentávamos não ser muito efusivos nas nossas manifestações de alegria. O senhor não acarinhava, fosse a que pretexto fosse, esse tipo de emoções, e nós tentávamos não contrariá-lo, não fosse mudar de ideias.
Felizmente para todos, as férias na praia, eram das poucas coisas em que meu pai não se coibia nos gastos. Eram prioridade número um, mesmo que passássemos o resto do ano a usar fatos de cotim e botas com solas cardadas, fizesse calor ou frio.
O odor do Tejo tinha-me reavivado, de forma brusca e violenta, essas memórias ainda frescas e, de repente, senti uma saudade enorme, todavia insuficiente para me fazer vacilar...
Refugiei-me sob as arcadas do Terreiro do Paço, deambulando por ali ao acaso, deixando as horas passarem sem saber ao certo como gerir a minha nova situação. Lisboa abria-se para mim e eu hesitava, tímido.
Ouvira falar, nas minhas tertúlias com camaradas mais vivaços, de um bairro alfacinha muito famoso naquela época - o Bairro Alto - e resolvi perguntar a quem passava como é que se ia até lá. O interlocutor propôs-me a tomada de um "eléctrico" até ao "Camões". Pensei que, com dinheiro contado no bolso, o melhor seria ir a pé e, esclarecido sobre o percurso a tomar, decidi dar corda aos sapatos e pôr-me a caminho...
Embrenhei-me naquele bairro de cangostas e becos, de estendais com roupa a pingar sabão, de cheiro a pataniscas, vinho e serradura proveniente das tascas galegas, quase uma em cada virar de esquina. Aqui e ali ressoavam-me os ecos de fadistas de ocasião, até a voz inconfundível do "Ti" Alfredo ecoava num qualquer rádio de goelas bem abertas. Cruzei-me com um bêbedo vagueando sem nexo, com putas atentando-me com promessas de prazeres inolvidáveis e outros cruzamentos.
Tantas emoções assim de chofre, nessas primeiras horas na capital, tinham-me deixado aturdido e encantado, saboreando tudo o que os meus sentidos puderam, até ali, abarcar.
Inebriei-me com o frenesim dos putos a chutarem na bola de trapos, das rameiras a invectivarem-se com verborreia indescritível, da varina a apregoar, com voz estrídula, algum peixe que lhe sobrara da manhã - a ninhada de gatos que pululava, em esfomeado miado, ao seu redor - e continuei a caminhar...
Exausto, mas estranhamente feliz, esgueirei-me por uma viela escura, a cheirar a vómito e a mijo, e ali verti águas, esquecendo momentaneamente o fedor nauseabundo.
Não senti remorso nem receio. Pensei como era boa a liberdade. Era, definitivamente, "o primeiro dia do resto da minha vida".
Cansado de ver passar os comboios, e na incerteza quanto ao que o futuro me reservava, resolvi abalar até à capital. Fartei-me daquela cidadezinha de interior, de patrõezinhos preconceituosos que me negavam um posto de trabalho, temendo que o meu apelido lhes pudesse causar engulhos.
Perante tanta má vontade, desisti de andar a "esmolar" de porta em porta. Era tempo de refazer a minha vida noutro lugar, algures onde pudesse passar despercebido e decidisse, de motu proprio, sem grilhetas nem estigmas.
Desta feita, em vez de continuar a vê-los passar, decidi apanhar o último, levando comigo apenas a roupa que trazia no corpo, algum dinheiro que minha mãe tinha providenciado, e a vontade indelével de esquecer tudo o que ficara para trás. Não guardei tristezas nem rancores, nem deitei culpas a meu pai pelos meus insucessos, nem à mulher que me pariu, pela bonomia excessiva, em face dos destemperos do marido com relação à nossa educação; muito particularmente à minha, pois um infeliz acaso quis que saísse primogénito...
Lembro-me ainda que, por essa infeliz razão e outras, fomos educados por forma a sermos comedidos, de acordo com regras de contenção e sobriedade impostas por meu pai, não obstante pertencermos a uma família pequeno-burguesa. Por exemplo, um dos meus irmãos, em pleno pino do Verão, pediu-lhe que mandasse fazer um fato mais leve para suportar melhor a canícula. Resposta imediata e sem apelo: a escolha dos tecidos, dos cortes e a altura apropriada para encomendar fatos, ou lá o que fosse necessário, era da sua exclusiva competência e não de um "imberbe" qualquer, enfatizando, bem, a palavra "imberbe". Meu irmão, que também não era bom de assoar, escolheu andar todo o santo Verão com uma batina de Inverno, de fazenda grossa, usada no colégio e a suar as estopinhas. Não se tivesse armado em cuco, pois então!
Recordo, como se fosse hoje: acabara de sair da adolescência, com as necessidades inerentes a essa mudança em todos os sentidos. É claro que dependia muito dos tostões que minha mãe sorrateiramente me metia no bolso, presumo que com algum receio de ser descoberta e também - garanto - com muito sacrifício. Isto porque meu pai nunca teve o costume de dar-nos dinheiro ou agraciar-nos com mimos. Pelo contrário, geria a economia do lar, destinando dinheiro para isto ou para aquilo, com metódica parcimónia; hábito que lhe ficou, em face dos maus exemplos de esbanjamento de bens de família por parte de meu avô paterno, nomeadamente dádivas "generosas" à Igreja e outros gastos desregrados com o jogo e sabe-se lá que mais. O seu filho herdara a gestão de uma casa quase arruinada e, associado a essa triste herança, o corte de relações com a família paterna por ter cometido o "sacrilégio" de se perder de amores por uma campesina analfabeta - a senhora, minha mãe...
Outro paradigma da personalidade agreste do meu progenitor, este de carácter anti-religioso, foi o facto de um dia eu ter aparecido em casa com uma gravura de "Nossa Senhora" que uma professora bem intencionada, mas desconhecedora do seu azedume contra a Igreja, tinha guardado dentro de um dos meus livros. Foi o suficiente para ele ter-se deslocado propositadamente ao colégio para travar-se de razões "filosóficas" com a infeliz criatura.
Épocas natalícias, pascais ou outras celebrações de carácter religioso, eram festas que passavam sempre ao largo da nossa casa. Jamais nos confessou o porquê de tão obsessiva intolerância. Presumo que tivessem sido ressentimentos contra a insensatez de meu avô, em face das ofertas excessivas aos clérigos...
Com vontade de apagar todas estas más recordações parti, um dia, sem saber o que me esperava, mas com uma certeza: um desejo inabalável de fugir. Sair daquela casa para sempre. Libertar-me, definitivamente, da persistente dúvida de ficar ou partir...
- Mamã, não sei o que lhe deu! Amo-o tanto, tanto e ele continua a defender tudo! Repara, mamã, que não há meio de tomar a decisão pela qual anseio há tanto tempo! Mais valia que arrumasse as botas porque o que é demais é moléstia e ele tem demonstrado que trocar os pés pelas mãos deixa marcas que não se podem apagar!
O que mais me chateia, mamã, é que quando tento aproximar-me dele, rechaça-me para lá da linha de cabeceira e exige garantias de segurança e bola estável. Bem insisto! Contudo, ele defende todos os tentos!
Já experimentei ir à figura, mas ele afasta-me sempre com as pontas dos dedos. Nem sequer me sinto indefesa! Achas que esgotei todos os recursos, mamã?
- Escuta, filha, pelo que me contas, creio que, idealmente, terás de treinar muito as jogadas de antecipação. Movimentas-te ao primeiro toque, conduzes as pontas de lança pelo miolo do terreno e obriga-lo a vários golpes de rins.
Como se não o conhecesses, valha-te Deus, minha filha! Sabes que ele só resiste até um determinado momento porque, lá no fundo da rede, adora ser batido. Se seguires o meu conselho, pode ser que consigas dominar o histérico e mitigar o prejuízo que se adivinha. Oxalá esteja enganada e não tenhas de correr muito atrás dele (do prejuízo). Ao prosseguires com esta estratégia, ele vai ter de te marcar à zona; não tem outra alternativa. Se falhares, serás obrigada a mudar de flanco, parando no peito e tentando meter na pequena área. Batido, ele nada pode fazer senão carregar-te à margem regulamentar. Se tal acontecer, tens de fazer vista grossa. Caso contrário, vais beneficiar o infractor. Prevejo que, com esta estratégia, talvez possas conseguir um empate ao fim dos primeiros 45 minutos. Será preferível a este arrastamento sem justificação. Agora, se continuar tudo por definir até ao final do tempo regulamentar, então, minha filha, só te resta jogar fora de casa porque esta coisa não pode prolongar-se ad aeternum!»
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