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AS AMÊIJOAS

por João Castro e Brito, em 10.11.21

Mito ou realidade, eis a questão. É difícil destrinçá-los, pois nem tudo o que reluz é ouro; ou nem tudo é o que parece; ou nem tudo o que vem à rede é peixe e por aí adiante.
É claro que escrever sobre um tema tão apaixonante como este, é sempre uma tarefa pessoal e arbitrária porque depende da tua vontade (desculpa lá estar a falar na segunda pessoa, pá; já pareço o JJ, valha-me Deus!) e capacidade de desbravar novos caminhos.
Depois desta entrada, passo a contar-te uma estória fabulosa porque é de uma fábula que se trata. Cá vai e espero que desfrutes de uma boa e intensa leitura de mais um dos meus belos escritos – passe a imodéstia.
 
Há muito, muito tempo (não confundas com aquela música do José Cid: Vem Viver a Vida, Amor), existiu uma sociedade de bivalves "bué" inteligente onde, curiosamente, andavam todos descascados.
Eram lesmas...perdão, resmas deles – se me permites a vulgaridade do termo – e de todas as espécies e feitios.
Porém, hoje, vou debruçar-me, quase exclusivamente, sobre as amêijoas. Eram, de tal modo, em tão grande quantidade que formavam uma espécie de monte cujo cume se perdia nos contérminos do céu. O que, para aquela época, era um feito quase babilónico, diga-se em abono da verdade!
Ora, como não tinham casca (concha), era um regalo para a vista de qualquer observador vê-las escorregar sobre si, desde lá de cima até cá abaixo, com volúpia e grande prazer – passe o pleonasmo.
Depois, como eram muito descascadas e escaroladas, estavam-se nas tintas para as críticas das ameijoas cascas-grossas do costume. Isto, por andarem muito saídas das cascas, apesar de terem vindo ao mundo desprovidas delas.
Os mais atrevidotes eram os mexilhões, não obstante subsistir aquela ideia pré-concebida de que quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão. Nada mais falso do que isso porque eles eram, mesmo, uns mexilhões das dúzias!
Para além de serem de uma inteligência rara em moluscos bivalves, sabiam tudo na ponta da língua.
Por incrível que pareça, as amêijoas tinham muita ponta na língua. Agora até botam a língua de fora e cospem para o ar, imagina! Como os tempos estão tão mudados! É fruto dos tempos em que já não há respeitinho nenhum, é o que é! Todavia devo acentuar, embora sem acento, que tenho muito respeitinho pelo respeito, mas nenhum pelo respeitinho...
Adiante, senão disperso-me.
Então, como ia dizendo se não tivesse divagado um pouco, as amêijoas, para quem desconhece os seus hábitos ancestrais, comunicavam entre si por telepatia. Já nesses tempos recuados em que o homem não passava de um antropomorfo néscio.
Por conseguinte e por consequência – passe a redundância – eram bestialmente evoluídas. Tampouco necessitavam de ir à escola, pois transmitiam umas às outras todo o conhecimento contido no cérebro que, a despeito de ser minúsculo, era muito comprimido. Daí terem a necessidade frequente de tomar aspirina para as enxaquecas.
À luz dos conhecimentos actuais, estudos exaustivos comprovaram que as amêijoas tinham, efectivamente, cérebro. Mas, como referi no parágrafo anterior, isso trazia-lhes efeitos indesejáveis, o que era uma maçada.
Como resultado da informação que partilhavam, todas sabiam o mesmo, ou seja: não havia a competição desenfreada que existe nos nossos dias. Aliás, se isso acontecesse, não tenho dúvida de que as relações entre elas seriam de cortar à faca e mais: como eram desprovidas de conchas, não teriam faltado facadas nas costas.
Por outro lado, não havia a chatice dos trabalhos de casa, uma seca do caraças que, hoje em dia, só serve para atrofiar a mente das crianças. Assim, viviam cheias de alegria e felicidade porque tudo lhes caía do céu, como se costuma dizer.
Por exemplo, para comer bastava-lhes abrir a boca e deitar a língua de fora. O que já era um grande avanço para aquele tempo; e, é claro, sobrava-lhes muito tempo para a ociosidade. Por isso, andavam descascadas para se entregarem aos prazeres dos sentidos. Devo sublinhar que, ao utilizar a expressão eufemística "prazeres dos sentidos", foi mesmo para evitar a referência directa aos prazeres do sexo, por uma questão de bom senso e, claro, de decoro, pois não quero ferir a tua susceptibilidade.
Ao que parece, seriam os únicos prazeres existentes porque ainda não tinham sido inventados os programas "culturais" das televisões generalistas, a internet, as redes sociais e outras formas recreativas para compensar a indiligência. Essas inovações surgiram muito mais tarde (século XX, pouco mais ou menos, como tens obrigação de saber).
É claro que não há sociedades perfeitas; esta foi, talvez, a maior aproximação que se fez ao Santo Graal civilizacional. Por essa razão, ou sem qualquer razão, esta espécie civilizada também tinha os seus extractos sociais: havia as amêijoas muito grandes e muito gordas, havia as vieiras que eram uma classe à parte, muito privilegiada, a qual dependia muito dos favores que prestava às amêijoas grandes e gordas, digamos assim. Havia o berbigão, o burrié, o mexilhão, as lapas, as ostras, estas últimas votadas ao ostracismo, desconhecendo-se, ainda hoje, as razões que fundamentaram essa entrega. E, é claro, havia outros bivalves que agora não recordo. Ah, esquecia-me de mencionar o marisco Eusébio: esse ocupava o último lugar na hierarquia social desta, ainda assim, admirável civilização de moluscos.
Um dia, uma amêijoa grande e gorda que por tal condição exercia funções executivas na hierarquia do estado, escoltada por um séquito de correligionárias, irritou-se sem motivo aparente e, inexplicavelmente, deu-lhe para embirrar com todos os bivalves...melhor dizendo: somente com as amêijoas mais pequeninas e outras classes de moluscos insignificantes, no que foi seguida, zelosamente, pelas outras.
Nessas circunstâncias extraordinárias, dado que tinham deixado de ser ordinárias, evidentemente, emergiu, inevitavelmente, uma paladina das amêijoas oprimidas. Depois emergiram outras e mais outras. Vai daí, a coisa gerou uma ameijoada de proporções preocupantes para a classe dominante. Urgia reforçar a segurança, conferir-lhe poder discricionário.
Nas hostes proletárias impunha-se inventar qualquer coisa revolucionária que pusesse termo à opressão de que eram alvo por parte das amêijoas grandes e gordas, pois a indignação não parava de crescer de dia para dia. E, à medida que a exaltação subia de tom, começaram a surgir facções e, com elas, conceitos e actos, até ali, inexistentes, como espírito de união e cisão, lutas sociais, insurgências populares e afins. Assim, a sociedade das amêijoas dividia-se entre as que apoiavam a classe autoritária e as que apoiavam a liberal. Elas não sabiam, mas a história revelou-nos que a discórdia só viria a beneficiar as amêijoas grandes e gordas (dividir para reinar).
Assim, de desavença em desavença, de desforra em desforra, de olho por olho e de dente por dente, descobriram o mal. Com o advento desta triste realidade as amêijoas nunca mais foram as mesmas.
Resumindo e baralhando: as amêijoas foram-se adulterando (não confundas com adultério que é uma coisa muito carnal) ao longo dos séculos, transformando-se, até aos nossos dias, em amêijoas-boas e amêijoas-cristãs.
Desta forma, e levadas pela sua neurastenia, percorreram um trágico e longo caminho de introversão: não obstante serem boas e cristãs, já não queriam saber das suas semelhantes nem queriam ouvir falar de discussões e de problemas chatos, como a fome, a guerra, as doenças, a exclusão social, o processo de privatização da TAP, et cetera.
Ainda, a propósito de neurastenia, penso, com alguma margem de erro, que as amêijoas sempre foram muito neurasténicas. Contudo, não me perguntes porquê porque não sei, não sei mesmo, juro!
Assim, chegaram a um ponto em que se desabituaram de procurar saber o que as outras pensavam (ainda te lembras que elas comunicavam entre si através da telepatia, certo?).
Cimeira após cimeira, na tentativa de reverter a situação, com grupos de trabalho, comissões, almoços e jantares, poses para a fotografia e sorrisos de circunstância, tudo isso não foi suficiente para travar o andamento que se adivinhava há muito tempo: começaram a fechar-se dentro de si (diz-se, até, que aprenderam com as ostras) e, desse modo, inventaram a concha. Por enquanto não se sabe se apareceu primeiro a amêijoa, ou a concha, mas estou convicto de que, com os actuais métodos de estudo, não demorará muito a saber-se.
Após esta importante descoberta, as amêijoas têm andado pouco saídas da casca e, devido a este facto inquestionável, houve um retrocesso civilizacional brutal na sociedade dos bivalves, coisa nunca vista nem imaginada. Presentemente, calcula-se que algumas nem chegam a sair. É a pura verdade!
Post scriptum: antes de cozinhares bivalves,verifica se estão bem fechados. Os que permanecerem fechados, depois de cozinhados, não devem ser consumidos. Sei que sabes, mas nunca é demais relembrar. Abraços e beijinhos.

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O SUBORNO

por João Castro e Brito, em 04.11.21

o suborno.jpg

Dos vários temas sobre os quais me tenho debruçado, não podia faltar um com este título, aliás sugestivo, não obstante já ter escrito acerca do assunto, nas suas cambiantes, desde o amarelo canário com tons definidos de azul marinho, passando pela elementar cor de laranja, cor de rosa desbotada e, ultimamente, a cor negra que se julgava erradicada do espectro cromático. Uma cor que parece querer emergir das trevas.
Quanto ao vermelho, falta determinar qual é o tom que assume nesta composição colorida. A dúvida entre o vermelho escarlate e o vermelho bordeaux, persiste.
Apesar de não encontrar ligação entre os parágrafos anteriores e o que se segue, devo acrescentar que vou mais na onda do Sócrates, um grande pensador da antiguidade, ao afirmar : "Como a vida está cheia de imponderáveis, comece sempre por aquela sobremesa à qual não resiste.", embora esta frase, que lhe é atribuída, careça de confirmação pela Academia das Ciências Filosóficas.
Penso, no entanto, que a delicadeza do tema merece, desta vez, um tratamento especial à parte. Assim, andei a investigar no Google e fui descobrir, numa prateleira virtual, "poeirenta", uma estória, aparentemente despretensiosa, com dez páginas, de autoria de Antonio De Donno Mindinho (passe a contradição), intitulada "Ensaio sobre o suborno, fascículo II".
Foi da sua leitura empolgante (li-a num abrir e fechar de olhos) que recolhi uma síntese deste pensamento para o texto que se segue, com as dispensáveis correcções, ao abrigo do desacordo ortográfico, e a devida vénia ao seu autor.
A páginas tantas, escreve Mindinho:
"...Pretendo tão-somente, através de pequenos exemplos, demonstrar que o suborno, afinal, não é uma actividade ilícita como a pretendem sentenciar, os sectores mais conservadores da sociedade. É, isso sim, um método de selecção como outro qualquer, uma obrigação, uma necessidade e, por consequência, um dever de civilidade do qual não nos podemos desobrigar.
Já Segismundo Freud prometia dar caramelos aos meninos e meninas que psi-canalizava para as suas sessões de psicoterapia, se lhe contassem os seus segredos. Ora, se isto não era suborno puro e duro, contudo benéfico, então vou ali e já venho!
Um vulgar dicionário diz-nos que subornar significa "aliciar para mau fim; seduzir para conseguir algo oposto ao dever...". É pura falácia como procurarei demonstrar a seguir.
Começo por citar o caso do avaliador imobiliário que determina o valor de uma casa em apenas três milhões de euros, quantia que lhe parece tão exorbitante, se comparada com os seus proventos anuais e que até sente um arrepio na espinha ao pronunciar tal número. Suponhamos que o potencial candidato a comprador, com o intuito de obter um empréstimo mais gordo, propõe ao avaliador que orce a casa em cinco milhões de euros, aliciando-o com uma "gorjeta" de dez por cento. Ora, ponham-se no lugar do avaliador. Iam armar-se em cágados e negar terminantemente o suborno, invocando normas morais da treta? Iam perder a oportunidade ímpar de ganhar num dia, o que jamais conseguiriam amealhar numa porrada de anos de trabalho, mais a mais que nem uns mouros? Evidentemente que já estão a pensar como eu: a resposta é um rotundo não!
Ele aceita o suborno e, no fundo, não faz mais do que o seu dever de cidadania. Pelo seu exemplo de abnegação e coragem vai poder amortizar as prestações da casa que, de outra forma, só estaria paga quando já usasse fraldas. Sem esquecer o futuro da caterva de filhos, resultado de três divórcios.
Ainda não estão convencidos da justeza do suborno? Então dou-vos outro exemplo, ainda, mais convincente:
Aquele documento de importância vital para o avanço de uma empreitada, um licenciamento,  encontra-se retido numa repartição autárquica. Alguém tem muita urgência na obtenção dessa autorização, mas a burocracia é lixada. Então, a tal pessoa resolve dirigir-se, por portas e travessas, a alguém que lhe possa desbloquear a situação com celeridade. O funcionário, zeloso, seguindo meticulosamente as normas da administração local, alega que tais procedimentos são sempre muito demorados, podendo até levar meses e, quiçá, anos porque são decisões de grande responsabilidade e por aí adiante.
A pessoa, interessada em desbloquear a situação, como quem não quer a coisa, passa-lhe, então, para as mãos as chaves e os documentos de um Mazda2, prontinho a mudar de dono; e com um sorriso rasgado nos lábios pergunta, mais uma vez, se é possível sair do impasse. O funcionário, ainda meio incrédulo, mas com um sorriso cúmplice, vai procurar o documento, bota-lhe a chancela e entrega-o solicitamente ao sujeito.
Continuam a achar que este acto de suborno e a atitude do funcionário da câmara também são reprováveis? Claro que não! Mais uma vez, concordo convosco. Qual é a pessoa que recusa esta forma de transacção? O funcionário não fez mais do que ajudar o Estado, afinal, todos nós, pois é mais um imposto de circulação que entra para os cofres do erário público (fora os impostos indirectos). Além disso ele não exigiu nada, limitando-se - repito – a fazer uma permuta vantajosa para as partes envolvidas no processo.
Com efeito, o suborno é nada mais, nada menos do que uma troca de serviços que deve ser incentivada e acarinhada, numa sociedade cada vez mais destituída de princípios. E pode-se dizer que em Portugal se tem trabalhado bastante, ao longo das últimas décadas, para contrariar o efeito perverso da ausência dessa troca.
Por conseguinte e em conclusão, proponho que, doravante, o suborno seja despenalizado, passando a ser considerado uma actividade lícita, cuja palavra, alvo de tanta infâmia, seja apagada do léxico nacional com a conotação negativa que lhe tem sido atribuída até aqui. Desse modo passaria a ter sinónimos mais simpáticos como, por exemplo: dar algo em troca de; substituir; alternar, permutar, et  cetera."
Nota final: Subscrevo a tese do Mindinho e, como ele, também penso que o esforço de muitos portugueses prossegue no sentido de alterar a interpretação deste conceito, injustamente, diabolizado anos a fio. Penso que está a dar frutos frescos e viçosos e, mesmo em tempo de pós-pandemia (?), está vivinho da Silva, graças a Deus!

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