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Criei este blogue com a ideia de o rechear com estórias rutilantes, ainda que às vezes embaciadas. Penso que são escritas sagazes e transparentes, embora com reservas e alguma indecência à mistura. No entanto, honestas.
Baseado no romance homónimo de Robert Burnier, vá-se lá saber porquê, "O Carteirista" (Pickpocket, para inglês ver) narra a estória atribulada de dois corruptos que se cruzam algumas vezes, um no papel de corruptor e outro no papel de corrompido (não confundir com cu rompido, não obstante serem palavras homófonas).
Como em todas as estórias que metem corruptores e corrompidos, há quem os considere boas pessoas e, às vezes, até vítimas de suposições infundadas, torpeza ou das circunstâncias.
Bem diz o povo, e muito sabiamente, que "a ocasião faz o corrupto", ou "corrupto que rouba a corrupto tem cem anos de perdão (não rimam, mas que se lixe)". Estes aforismos acabam por ter alguma lógica; quando mais não seja, aforística.
Outros anseiam vê-los na cadeia durante muito tempo, mas, enfim, é como tudo, pá (não confundir com "eu como tudo, pá!" em alentejano ou algarvio)!
A obra é uma abordagem centrada, em primeiro lugar, num caso de absolvição sui generis, dado que só se conheceu o seu desfecho após um longo processo que se arrastou durante mais de trinta anos, com tudo o que isso pesa, em termos de ansiedade e incerteza, para os infelizes agentes delituosos e respectivas famílias.
Uma das personagens e, de certo modo, o sujeito fulcral da obra, é um indivíduo de aparência cuidada, ar inocente e um "bon vivant". O seu nome é Artur Salgado Inocêncio, carteirista de profissão e corrupto nas horas vagas.
Este ex-provável meliante, de presumível ascendência dolicocéfala por parte do pai e mística por parte da mãe, protagoniza o autor confesso de um violento crime de assalto à mão desarmada efectuado numa manhã remota de 4 de Fevereiro, cujo ano foi omitido de forma inexorável e sem qualquer explicação do autor, mas, do mal o menos, "é só fazer as contas".
O referido assalto havia sido perpetrado na estação de metro da Rotunda (actual Marquês de Pombal), na pessoa de uma senhora idosa, com cerca de noventa e sete anos, que se aprontava para entrar numa carruagem com destino a Alvalade. Desse ferino e despropositado crime (a mala da velhinha continha apenas um lencinho de mão com ranho seco, algumas moedas de tostão dispersas, uma nota de vinte paus muito amarrotada, um terço e dois preservativos por estrear) resultaram ferimentos graves na pobre anciã, a qual foi prontamente socorrida por populares que imediatamente ligaram para o 115 (na altura ainda não existia o 112 nem o 808242424) que, sem perder tempo, deslocou uma ambulância para o local, três horas depois.
De pouco serviu a prontidão do 115, pois a senhora jamais recuperou das pisaduras de que foi alvo, até hoje, encontrando-se, por consequência, em estado de coma induzido a seu pedido.
Durante a fase de julgamento, a defesa, astuta como convém, apresentou uma dúzia de testemunhas, sendo que nenhuma delas se lembrou do que tinha feito no dia anterior, quando mais no longínquo dia 4 de Fevereiro.
A acusação bem insistiu no sentido das ditas tentarem avivar a memória, mas foi em vão, nicles de bitocles; bateu o pé, rabujou, chamou nomes, mas daquelas bocas não saiu fosse o que fosse, tampouco, uma vogalzinha, ou uma consoante, nada de nada.
A defesa pediu que fosse declarada a inefabilidade crono-jurídica (penso que esta palavra composta não existe, mas que se lixe) do momento e a acusação pediu baixa devido a uma crise de rinite alérgica do Delegado do Ministério Público. Contudo, o pedido foi indeferido para não adiar o julgamento sine die.
Foi requisitada, sem demora, a presença de um Subdelegado do Ministério Público, mas como tardava a substituição do Delegado pelo Subdelegado, por este último se encontrar a banhos nas Ilhas Seychelles (não confundir com a Ilha Seixal e muito menos com município do Seixal), o colectivo requereu a presença de um Inspector Adjunto Principal, da Inspecção-Geral, em serviço na Subdelegação; só para desenrascar.
O meritíssimo Juiz da comarca, Doutor Honoris Aadhunik Chandrachur, de nítida ascendência escocesa, não só absolveu o réu desse crime hediondo, como ainda confessou que tinha sérias dúvidas sobre a ocorrência do assalto, no dia em causa, porque podia ter-se dado um dia antes ou um dia depois. Para além disso, o douto e respeitável juiz reconheceu que Artur Salgado Inocêncio tinha transmitido até ali provas inequívocas de honestidade e, acima de tudo, de modéstia à parte e, por isso, dignas de reconhecimento.
E, ao concluir o acórdão, obviamente com o acordo de todos e a abstenção da acusação, salientou: «Vá para casa e livre-se de praticar assaltos em dias de feriado, homem! Para mais, sendo o dia 4 de Fevereiro; por amor da Santa!» - sublinhando que trabalhar em dias santos era crime passível de julgamento e, no máximo, repreensão agravada com recurso de agravo (Decreto Lei nº 169/17, Artigo 25º), rematando que desta vez deixava passar, realçando que era uma vez sem exemplo.
No mesmo processo: "Operação Mão de Vaca", como vem referido, a páginas tantas, nesta excelente criação imaginária, temos, então, outro corrupto, um falsário, personagem de índole duvidosa, como todos os falsários, chamado Joaquim Sócras da Silva, sobre o qual recaíam fortes suspeitas de crimes de peculato e falsificação de notas de mil escudos. O sujeito havia sido condenado preventivamente a prisão domiciliária numa conhecida hospedaria de Évora e só fora libertado depois de caucionar o pagamento de uma bica e um bagaço a uma juíza e um garoto ao oficial de justiça. Tudo isto em consequência de fortes indícios do seu envolvimento em outros ilícitos para além dos previstos na lei (há aqui uma incoerência, peço desculpa). As suspeitas eram tão evidentes que ele próprio - passe a redundância - , em dado momento, chegou a pensar, embora não o dissesse, que os cometera.
Os seus advogados entenderam que a pena era acrónica e, por esse facto, inadmissível, injusta e desprestigiante para o alto gabarito e honestidade do seu constituinte; sobretudo, uma enorme afronta contra a sua honra.
O suspeito, ao tomar conhecimento do recurso, teve um breve momento de desalento e, embora fosse agnóstico, exclamou: «Valha-me Deus, onde é que isto vai parar? Porque é que estão todos contra mim?»
Quase no epílogo da estória e resumindo toda a acção deste drama narrativo, pois já estou com uma calanzice do caraças, lê-se a tantas outras páginas que o processo da "Operação Mão de Vaca" foi arquivado, embora a senhora idosa continue em estado de coma induzido. Porém, foi imediatamente reaberto outro com o nome "Operação Grão de Bico", por suspeita de arquivamento, mais a mais em arquivo morto, de pedidos sucessivos de inquérito, formal e atempadamente formulados pelo Ministério Público.
Parece que esse tal Inspector Adjunto Principal da Inspecção Geral, veio agora alegar, apesar de alguma hesitação, mas querendo mostrar serviço, ao que parece, que afinal o suposto meliante pode estar implicado em vários atropelamentos de bicicleta, devido à utilização mal calculada do método do esticão para sacar objectos, nomeadamente malas de senhora. Bom, mas estas suspeitas ainda estão por confirmar.
E pronto, não escrevo mais porque isto, hoje, correu-me mal pra caraças!
Heitor era doido por sopa de letrinhas.
Desde menino que tinha esta obsessão gastronómica que herdara de seu tio Arlindo, conhecido industrial de alimentos e um indefectível da sopinha de massa.
Muito antes de conhecer o alfabeto fonético, paradoxalmente, já arranhava muito bem o grego, interessando-se, em particular, pelo chamado período clássico, onde Heródoto de Halicarnasso, por exemplo, lhe despertava um apetite voraz por rosbife.
Perante um cenário tão promitente é fácil conjecturar ou até especular - passe a redundância - que se deve ter tornado, surpreendentemente ou, quiçá, sei lá, num potencial literato emergente. A tal ponto que é consabido que dominava precocemente conhecimentos avançados de estudos literários à distância.
Todavia, sempre recusou sopa de tomate e manjericão; abominou a de abóbora e declarou guerra às sopas de pevides e estrelinhas, por muito inverosímil que nos pareça.
Na fase da adolescência, aquele período muito parvo e inconsciente, cheio de sangue na guelra e espinha no dorso, quando os fedelhos se escamam por tudo e por nada, ele era diferente; comia sempre num enorme prato de sopa "Cerâmica de Valadares" - passe a publicidade - que ele, nestas coisas, era muito esquisito, benzesse-o Deus Nosso Senhor.
Era nas bordas do prato que ensaiava prosa cacográfica com as letrinhas da sopa. Também tinha aquela intuição, só acessível aos seres eleitos, de que a leitura e a escrita criativa prejudicavam seriamente a ignorância e, por isso, insistia na sua ordenação perfeita de modo a formar, pelo menos, frases lacónicas; e a mais não era obrigado, pois já fazia muito para além da sua aptidão inata.
Heitor faleceu há dias, com tanto ainda para dar, mas a vida é mesmo assim: feita de imponderáveis, por muito que nos tentem convencer de que o destino marca a hora...
O relatório da autópsia não podia ter sido, bem a propósito, mais conciso: utilização excessiva de palavras parónimas com acento tónico na primeira sílaba como, por exemplo, átono e átomo ou na segunda como apóstrofe e apóstrofo.
Quanto ao Acácio, há muito que emudeceu. Saturado de contar mentiras e semear mexericos a torto e a direito, a boca resolveu pregar-lhe uma partida, fugindo-lhe para a verdade. Tantas vezes vai o cântaro à fonte, é o que é! Ainda esboçou a tentativa de a perseguir, mas debalde (não confundir com de balde); era impossível! Desta vez a boca correu mais célere do que o boato.
Escusado será dizer que, para recuperar a fala, Acácio aguarda que alguém, por caridade, lhe mande a boca.
A Arlete, ao passar por uma montra da Rua Garrett (leia-se o trissílabo garréte), viu exposta uma linda jaqueta de pele com a qual sempre sonhara. Olhou-a através da vitrina, de todos os ângulos que as suas trinta dioptrias permitiam, e ficou fascinada.
Em casa, comentou isso com o esposo:
«Hoje, estive vai-não-vai para comprar uma jaqueta de pele, daquelas que tu nem calculas! Só não a comprei porque me ia custar os óculos da cara!»
«Graças a Deus que tiveste o bom senso de não os teres deixado lá, filha! Era muito desagradável voltares a usar olhos!»
Já o Sargento Ramires, estava de folga a curtir música rock. Um pouquinho juvenil, um tudo-nada rebelde, mas, mesmo assim, um nadinha ruidosa. Contudo, nada marcial, coisíssima alguma uma brigada, tampouco regimento, batalhão ou pelotão. Assim, o Sargento Ramires tomou uma decisão inalienável, indiscutível e exclusiva: pediu a carta patente de oficial subalterno depois de passar à reserva territorial.
Heitor, Acácio, Arlete e Ramires, quatro casos pessoais, quatro exemplos de desprendimento; quatro lições de altruísmo, dedicação e abnegação. Sobretudo, quatro estórias paradigmáticas.
Olá, meus caros e minhas caras. Sei que ainda é um bocadinho cedo para comemorarmos o Natal (este ano, provavelmente, ainda circunscrito ao núcleo familiar dos nossos lares...) e também sei que uma boa parte de vós estaria mais interessada em ler uma estória picante, mas, por se tratar de vésperas de um acontecimento festivo muito importante, cheio de paz, amor e comezaina até rebentar, não vou fazer-vos a vontade, desculpem lá, mas é inapropriado!
Porém, para não pensarem que sou um desmancha-prazeres, tive uma ideia que considero luminosa; ao fim e ao cabo enquadrada no verdadeiro espírito natalício, n'é verdade? Ideia luminosa. Estão a ver a simbiose?
Assim, aproveitando o ensejo de que o Natal, para além de significar amor (João 3:16-17), também significa mesa farta (José 4:2-3,14159), resolvi proporcionar-vos uma receita muito fácil de fazer e que vai agradar-vos sobremaneira. Dei-lhe o nome sugestivo (se calhar pomposo de mais, peço desculpa) de "Peru populista à Tocam os sinos". No entanto, é um vulgar prato de peru assado no forno que não requer grande mestria na arte de cozinhar, como já referi. Contudo, se por um lado é um pitéu de trás da orelha; e olhem que a mim, nestas coisas, ninguém me faz o ninho atrás da orelha porque ando sempre com a pulga atrás dela - acreditem - , por outro lado também não sei porque é que se diz orelha em vez de orelhas, pois são duas: precisamente, uma em cada lado do rosto. Todavia, mais havia para dizer em relação às orelhas, mas prometo que abordarei este assunto lá mais para a frente, se Deus quiser.
Espero que gostem da sugestão e, a talhe de foice, desejo-vos bom apetite (também concordo convosco; "bon appétit", neste contexto, suava pindérico de mais)!
Ingredientes:
- Um peru populista nédio (não confundir com médio porque sobra sempre um bom garfo e um médio pode não ser suficiente)
- Um balde de água fervente (o balde de água fria é escusado porque, para o efeito, tem de borbulhar)
- Alho, salsa e fuligem qb e depois logo se vê.
- Tapas e biqueiros qb.
- Batata nova qb (Se não houver batata nova, pode ser semi-nova), com o respectivo saco de serapilheira.
- 20 quilos de banha, mais coisa, menos coisa (se o bicho for muito anafado, deve-se reduzir a quantidade de banha, mais ou menos, para metade).
- Bota (direita ou esquerda) pra pregar uns quantos biqueiros no cu do animal, previamente, untado.
Modo de preparação:
Toma-se um peru populista, de preferência bem nutrido. Bota-se em água a ferver, depena-se muito bem e esfrega-se com alho, salsa e fuligem.
Seguidamente, retira-se-lhe a barba (sai sem dificuldade porque é rala) e demais adereços inúteis.
Se o sujeito começar a espadanar é conveniente ferrarem-lhe algumas tapas. Conferem algum ambiente e abrem o apetite.
Bota-se o peru populista num pirex de dimensões generosas e junta-se-lhe batata nova (ou semi-nova) e, mais ou menos, 20 quilos de banha.
Como já tinha aconselhado, não convém pôr muita para aproveitar a gordura do galiforme. Para ornamentar pode ficar ao vosso critério, mas proponho que se lhe despeje o saco de batatas, juntamente com o resto do seu conteúdo em cima. Aposto que todos vão gramar à brava! Nomeadamente, a pequenada.
Recomendo, também, que se lhe junte molho tártaro e muito vinagre na expectativa de que liguem horrivelmente mal com algum resto de fuligem que possa ficar alojado nas virilhas ou atrás das orelhas que são partes escondidas e, por consequência, mais difíceis de limpar.
Polvilha-se com vinte quilos de coentros picados "et voilà" (não sou apologista de estrangeirismos, mas acho que esta expressão vem muito a propósito)!
É possível que o peru populista se sinta um bocado marfado e ofereça alguma resistência à entrada no forno. Todavia, ao contrário do que possam pensar, isso é sinal de que tudo corre pelos ajustes e o assado vai ficar bem apurado.
Portanto, e em jeito de conclusão, se ele conseguir escapar, pois que escape! O apreciador mais exigente pode, mesmo, ajudá-lo a fugir com meia dúzia de biqueiros no cu.
Quando já só se vislumbrar a sua silhueta depenada e gordurenta no horizonte, desliga-se o forno, parte-se o pirex, deita-se tudo para o lixo, canta-se, naturalmente, o "Tocam os sinos", preparam-se umas sandochas de mortadela, abre-se um tetrapack de vinho tinto rascante Camilo Alves (passe a publicidade), mandam-se os putos para a cama e passa-se a consoada a contar anedotas do Bocage. De preferência, daquelas muito porcas. Espero que gostem.
Peço encarecidamente desculpa aos hipotéticos leitores e leitoras, mas tinha de regressar a um tema que me fascina sobremaneira que – presumiram bem – é História de Portugal, isso mesmo! Assim, sem mais delongas, vou debruçar-me, desta vez, sobre uma das histórias de amor mais lindas e mais pungentes do reino de Portugal, dos Algarves e "se mais mundo houvera lá chegara" - parafraseando o meu estimado amigo Luís Vaz. Prossigamos, então:
Inês foi aia e Pedro foi rei. Para quem não está ao facto, isto, de facto, foi um facto. Logo, tivemos mais um caldo entornado na nossa História ou um caldinho como é comum dizer-se. Tanto que se consumou e tragicamente se consumiu.
Conta esta estória que, nas galerias sombrias do Paço, Pedro cruzava-se, nessora, já lusco-fusco e amiúde, com Inês, ali, a dois passos, e reparava que os seus olhos eram lindos e de uma luminescência esfuziante. Para não dizer dos ombros que eram tão alvos e tão cândidos que davam para encher o olho (mais adiante, explico a razão porque davam para encher o olho). De tal modo que, cada vez que se viam, Pedro sentia uma vontade desmedida de lhe deitar a alça do vestido abaixo.
Permitam-me, aqui, uma pequena digressão: Segundo estudos efectuados muito recentemente, está comprovado, por portas e travessas, que os reis eram uns licenciosos do piorio (não confundir com licenciados porque, salvo honrosas excepções, eram uns bestuntos analfabetos), capazes dos piores desregramentos, pondo em causa o pundonor da monarquia. É claro que estes hábitos ancestrais não constituem novidade para quem está a par das marotices da nobreza de antanho. No entanto, é só mais uma achega para tentar desmistificar a falsa noção que as pessoas têm acerca da superioridade moral da aristocracia de outrora. Felizmente que a fidalguia, agora, tem maneiras! Honras lhe prestem porque fidalguia sem comedoria é gaita que não assobia, como disse alguém, cujo nome já se me varreu. Prossigamos:
Certa noite de luar (como sabem, o luar nada mais é do que a luz do Sol reflectida pela Lua), a aia devaneava, doce, lânguida, derramando uma lagrimazinha de crocodilo, quiçá pelas cebolas do Egipto, entre frondosos arbustos, aprumando o busto, inalando a fragrância que vinha do Mondego ou talvez do Alva, quando Pedro, arrastando o manto, coçando o mento, exalando menta e avivando a mente, se encontrou com ela, cara a cara e de caras, pintaram a manta.
O calor da noite (ou entusiasmo), a brisa branda do Dão, o aroma das benefes, a distância dos olhares pudibundos e furibundos dos cortesãos e cortesãs, fez com que os dois amantes inacabados percebessem que era chegado o tempo de dirimir aquela indefinição do amor.
Sem perderem tempo, submeteram-se, segundo a própria vontade, aos ímpetos lúbricos da carne, como convinha e, claro, a bronca estalou: toda a corte ficou a saber que o rei estava metido numa grande alhada por via de uma bela plebeia, pois embrulhara-se nas saias de uma, pondo em perigo os costumes, usos e abusos da realeza.
Vou sintetizar um pouco mais isto porque não me está a correr nada bem...
A troco de uma mão-cheia de Dobras, três magalas horrentes, coniventes e sem dentes, apanharam Inês, lavando no rio, desacautelada, semi-nua, semi-inconsciente das intenções maliciosas dos conspiradores, defensores da nata e, com a frieza inata dos estripadores, vararam-na...
Pedro uivou que nem um lobo, espumou de raiva que nem um cão, berrou que nem um bode e jurou vindicta.
Cavalgou por todo o reino e além fronteiras, conforme tinha aprendido no livro de Bem Cavalgar Toda Sela, vasculhou as comarcas, as dinamarcas, perscrutou as marcas, as peugadas, os rastos, os indícios, os vestígios, os sinais, enviou emissários, comissários, mercenários e, por fim, caçou os sanguinários.
Os assassinos a soldo foram sumariamente presentes ao Rei que os esventrou, sem mais aquela, perante uma multidão exaltada, aficionada e sedenta de sangue e arena.
Ao primeiro extraiu-lhe o fígado pelas costas e fê-lo em iscas. Ao segundo, sacou-lhe o coração pelo peito e, tendo-o desfeito, jogou-o aos cães; a multidão ululava de prazer mórbido e gritava "olé!". O terceiro jamais apareceu, mas foi excomungado, exonerado e expulso das Forças Armadas, sem direito a qualquer estipêndio ou subsídio.
Depois, com uma lágrima ao canto do olho, dado que era zarolho, Pedro sentou o corpo jacente e arrefecido de Inês numa poltrona e prometeu punição aos poltrões. A fidalguia contrita, temendo o castigo régio, comia tremoços e pevides e enganava a inquietude torcendo as orelhas.
Um a um, em fila do pirilau (fila indiana), vieram beijar as mãozinhas frias de Inês que lhes retribuía com um sorriso de morte ...
Esta estória não se esgota aqui, como constatam pelas reticências. Todavia, deixo o seu desfecho ao juízo da vossa imaginação ou à leitura atenta do último romance de Joaquim da Silva Reboredo: "O Amor Infinito de Pedro e Inês", Edições Maozinhas de Veludo.pt.
Uma coisa é certa: Não casaram nem tiveram filhos, tampouco foram felizes para sempre. Também nunca brincaram às escondidas ou à apanhada, mas amaram-se perdidamente até ao fim.
Passados séculos, ainda se escuta o restolhar dos seus corpos quando se passa junto ao túmulo, no Mosteiro de Alcobaça.
Nota final: Mais uma vez quero pedir desculpa ao professor José Mattoso pela minha falta de rigor histórico e, por conseguinte, elevada ignorância. Muito obrigado e bem haja!
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