O Governo da República, através de um porta-voz que preferiu manter o anonimato, cobrindo o rosto, anunciou que vai realizar uma rigorosa auditoria interna no sentido de desmascarar a corrupção e a pouca vergonha que alastra pela gente séria desde há largas décadas.
Concluiu o plenário ministerial que toda a sua actividade – com realce para a económica e financeira – torna de jure, de facto e fisicamente impossível que a gente séria consiga sobreviver com dignidade aos luxos e papos secos com torresmos que teima em alardear.
A mesma fonte, que desta vez só mostrou a ponta do nariz porque estava a sentir falta de ar, afiançou, pouco segura – passe a contradição – , que algumas pessoas com cargos públicos estavam tão convencidas da justeza da lei que se sentiram na obrigação moral de revelar ao plenário diversas trafulhices e pecadilhos variados que praticaram, e continuam a praticar, para aumentarem substancialmente as suas mais valias e facilitarem a vida aos parentes e amigos, respectivamente, por ordem hierárquica.
Veja, você, por exemplo, alguns casos como os daquele ministro e daquela ministra ou até o de um secretário de Estado do anterior Governo ou até mesmo o de um do actual Governo: casos em que o ministro, sicrano, alugava a casa ao seu chefe de gabinete, fulano, para este mandar umas quecas com a amante, beltrana, e sem recibos; imagine só onde é que já se viu?! É que, contado, ninguém acredita!
A mesma fonte, descobrindo um pouco a careca, pois começava a suar as estopinhas, revelou ainda que um conhecido advogado e militante descabelado (não confundir com excessivo), de um partido igualmente conhecido, nas suas inocentes viagens ao Brasil, havia feito uns biscates que rentabilizaram de modo substancial a sua, já gorda, conta bancária. Isto, no domínio das conjecturas! Lagarto, lagarto (sem desprimor para o Sporting)!
No entanto, aparentemente, revela ser um homem de uma probidade irrepreensível, apesar de ter passado umas férias injustas, sem poder sair da sua casa situada numa zona nobre da capital. Mais a mais, com uma pulseira electrónica de plástico! Se fosse de ouro, vá que não vá; ainda podia oferecer a uma amiga!
A agravar a iniquidade de tal pena, não pode viajar até ao outro lado do Atlântico sob risco de ser engaiolado pela polícia brasileira por suspeita de crime de homicídio na pessoa de uma pessoa morta que, coitadinha, já é falecida.
Um pouco à semelhança, como poderão depreender da lógica narrativa, até o próprio primeiro ministro deve meio ano ao barbeiro que, normalmente, lhe escanhoa a barba e trata daquele lindo penteado ondulado.
Quanto ao outro, ainda que nos pareça inverosímil, bota armadilhas para coelhos, arma costelas e ainda dispara bolinhas de chumbo contra tudo o que se mexe, até mesmo contra a sogra que está de tal modo sem forças que já nem pestaneja.
A mesma fonte, tirando o pano que lhe cobria o rosto e mostrando, somente, uns óculos escuros, idênticos aos daquele cantor do norte (carago!) que curiosamente nunca os tira, refere, ainda, que sofre de estigmatismo agudo. E a gente a ver com isso?
Ou o caso daquele ministro que veio a público confessar (depois de acusar um secretário de Estado e um subsecretário de Estado de lhe terem roubado um telemóvel e um "laptop", respectivamente o secretário de Estado e o subsecretário de Estado) que o filho era um "agarrado", um "malcriadão do caralho" e "batia na mãe".
Ora, digam lá se isto não são coisas sem trelho nem trabelho! Valha-lhes Deus!
Perante este cenário, unanimemente reconhecido (em cinco presentes, contaram-se trinta e três votos a favor), a perplexidade dominou o plenário que se interrogou: "como é que a gente séria se desenrasca?" e "será que vai roubar para a estrada para passar despercebida?" e "se apenas quarenta ladrões andam a monte, como é que um pobre funcionário público pode sustentar a família (contando com a sogra); a amante (contando com a casa posta); o popó topo de gama da mulher (contando com o amante da mulher); o popó topo de gama da filha (contando com o namorado actual da filha); a "super bike" do filho (contando com o namorado actual do filho); a ração para o cão (contando com as incursões da cadela ciosa da vizinha que, por sinal, é muito boa (a vizinha); as férias na Quinta do Lago (contando com o iatezinho, os amigos e amigas) e por aí adiante.
O enumerar de tantos casos avivou as consciências mais conscientes – passe a redundância.
Afinal, a auto-denominada gente séria, a favor da qual o executivo não pára de se debater, ainda pratica surf em mar chão, apesar de alguns deles, designadamente secretários e subsecretários, se queixarem de que lhes roubam as camisas, sabendo-se, como se sabe, que não havia necessidade de se saber, nem de fazer, pois, a bem, até lhes podiam levar as calças.
Mas, enfim, que se lixe, vão-se as calças, mas ficam os cintos!
Posto isto, enquanto alguém servia os presentes com pasteizinhos de Belém e chá de tisana, foi elaborado um comunicado que, pela sua linearidade e simplicidade, diz bem do enorme amor dos políticos para com o "povão" e reza assim:
"Atendendo a que o Governo está convicto dos enormes sacrifícios que desde há tempos imemoriais têm vindo a ser impostos aos cidadãos e cidadãs deste país, concluiu este plenário que temos vindo a ser subjugados por uma classe sinistra que nos quer convencer de que vive do trabalho honesto. Esta mesma classe que a gente designa de gente séria. Assim, o Governo da República decreta, sem efeitos retroactivos para não prejudicar direitos e regalias, adquiridos e consignados na Constituição da República:
Que seja feita uma rigorosa auditoria interna à gente séria para que o país fique a saber com que linhas se cose e que, de uma vez por todas, as pessoas não fiquem indiferentes às medidas económicas e financeiras que o Governo se vem esforçando a fazer, à falta de outro entretém, ou ocupação legal mais lucrativa."